terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Necropsia - Por Domingos Barroso


Deixe-me ser santo,
um sujeito bacana.

Renovo minha alma
no deserto da colina.

Não preciso cavar com as próprias unhas
um poço profundo para que brote da fonte
água pura e benta.

Deixe-me ser santo
asinhas meio caídas
arrastando-se pelo pântano.

A Verdade arde,
o fogo transparente.

Começo hoje a plantar um novo jardim
na varanda de jarros tristes.
Não espalho sementes.

Espero a boa vontade dos pássaros -
Os férteis bicos de longas jornadas.

Deixe-me ser santo,
a testa larga e os olhos míopes.

A saudade do outro suporta-se -
mas a ausência da estranha cumplicidade
conquistada com os objetos domésticos
amedronta e enlouquece.

Quanta falta me rasga o peito
das paredes silenciosas,
dos cantos lúgubres das salas,
quartos, atrás da geladeira.

Onde diabos se meteu
minha pequena lagartixa.

Morreu de fome,
de tristeza.

Saudade de gente passa -
mas criar laços
com a tímida surdez
dos copos, taças, pratos
de outra casa
é infernal.

Deixe-me ser santo,
admirar o dedo quase decepado
debaixo de uma tampa de cisterna.

Alguém há de beber do meu sangue.
As lágrimas já perderam o sal
e o rumo do mar.

Domingos Barroso

Um comentário:

  1. Socorro e Domingos,

    Na minha ótica psicológica e na minha opinião,uma poesia nestes moldes, é o ego juntando todos os arquétipos e transmutando para um belo e profundo escrito.Ela é a essência de todos nós.


    Abraços : Liduina.

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