Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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domingo, 28 de fevereiro de 2010

A tênue fibra do desejo

Deve ter sido aquela vocação evangelizadora tão própria das mulheres. Sabia que o noivo gostava de uma farra, apreciava um carteado e aquela conversa interminável com os amigos. Imaginou, no entanto, que com a força do amor alinharia aquela árvore torta. Terminaria por domesticar aquele animal selvagem com a ração diária, com os agrados de fêmea, com a hipnose cotidiana. Imaginou que o lar com seus pesados atributos : filhos, contas e o magnetismo da TV apreenderiam aquele ave inconstante, sem que ao menos ela percebesse as tariscas da gaiola. O tempo, no entanto, acabou por mostrar a D. Gertrudes que não existe coisa mais difícil de moldar neste mundo que a delicada fibra óptica do desejo. Ludugero mostrou-se sempre um pai carinhoso e um marido exemplar. Trabalhava duro numa pequena panificadora que adquirira. Ofício árduo de despertar madrugadino , onde diariamente rivalizava com o alvorescente canto dos galos e com a sangria dos primeiros raios do sol.Entre uma bolacha e um pão de ló, entre um passa-raiva e um manzape, ia Ludugero tocando a vida. Os arraigados hábitos antigos, no entanto, permaneceram indeléveis, imunes às pregações de D. Gertrudes. Nas sextas e sábados saía para um barzinho com os amigos e viravam a noite num carteado interminável regado a cerveja , a reminiscências e fofocas. A última válvula de escape de Ludugero, uma espécie de prozac natural que usava para escapar da doideira do dia a dia. Gertrudes, no entanto não se conformava: vivia a implicar com a vida noturna do marido. Fazia-o insidiosamente, uma vez que entendia : os antecedentes criminais do marido precediam ao matrimônio. Ludugero já por mais de uma vez lhe havia jogado na cara: --Meu bem, você sabia que eu gostava de um joguinho, por que diabos casou comigo, não procurou um cardeal , um monge, um santo... ? Havia , no entanto, uma outra razão para a implicância da mulher: ela temia que, varando as noites entre uma birita e outra, em meio aos ases, aos valetes, terminaria por aparecer algumas damas ou uma rainha de paus. Por trás de tudo, sobrenadava o ciúme e a desconfiança de D. Gertrudes.
A água mole bateu na pedra dura, mas não a furou. Todo final de semana , para o crescente desespero da esposa, Ludugero escapava lépido para o jogo. Um dia, por fim, encheu-se até a tampa da caçarola da paciência D. Gertrudes. Antes de ver o marido vestir-se, numa sexta-feira, para as funções lúdico-etílicas do final de semana, articulou o plano meticulosamente preparado durante o mês. Deixou os filhos na casa da sogra e arrumou-se toda, com um vestido tubinho preto. Quando o marido pensou em despedir-se, como de costume, ela saltou de lá e o surpreendeu:
--- Amor, hoje eu vou com você. Estou doidinha para ver um jogo de cartas!
Gertrudes disse isto, sem tirar os olhos do semblante do marido, esperando o protesto, a popa. Ludugero, no entanto, para sua surpresa, não se alterou, apenas lembrou que o programa podia ser chato e cansativo para ela, mas que ficava feliz, não tinha nenhum problema.
Como era de se esperar, a programação não podia ser mais pesada. A esposa sentou a um canto, numa cadeira desconfortável, no Bar do Giba. A conversa varou a noite, regada a cerveja e baralho. Futebol, política, fofocas . À medida que as horas se iam escorrendo, para o terror de Gertrudes, os circunstantes iam ficando mais animados, falando mais alto , discutindo com muito mais fervor. Lá pras cinco horas da manhã a esposa compreendeu que eles tinham ainda fogo na caldeira para mais uns dois dias. Estava já escornada, cansada, com todos os músculos doendo. Chamou então Ludugero e o suplicou:
--- Pelo amor de Deus, me leve para casa que eu já não agüento mais, estou morta de cansada e já não consigo nem ficar em pé...
Ludugero, então, solícito, pediu um tempinho aos amigos , tomou a mulher pelo braço e a levou para o aconchego do lar. Não sem antes lembrar:
--- Ta vendo, mulher, você vem uma veizinha e fica assim parecendo que caiu de um avião. Isto é para você ter uma idéia do meu sofrimento que passo por este suplício todo fim de semana...

J. Flávio Vieira

4 comentários:

Domingos Barroso disse...

Rapaz, é como costumo dizer
em determinadas situações:
não resta opção, caminho do meio,
do que crer piamente no sacrifício
humano sobre todos os pesares físicos e emocionais dos anjos.

Nem sei por que falei isso.
Aproveitei o embalo do causo.
As imagens nas palavras,
o hálito ainda fresco da prosa
estonteante de tão límpida e cortante.


Zé Flávio,
abraços.

Obrigado pelo contentamento
que tua estória me trouxe.

Glória Pinheiro disse...

José Flávio, você é:

O Mestre dos Mestres não somente nos debates, como também quando escreve contos com as peripécias dos seus personagens. Grande José Flávio!

Abraço

Glória

Claude Bloc disse...

Zé Flavio,

O melhor em seus textos é a propriedade das palavras, a sintonia das idéias e a versatilidade do escritor.

Maravilha!

Não há quem admire mais seus escritos do que eu. Puramente alto-nível literário.

Abraço,

Claude

jflavio disse...

Abraço ao Domingos, à Glória e à Claude escritores/poetas de tão fina sensibilidade e que me dão a honra de ler estas potocas.