Da Igreja da Penha, em Itapagipe, muito pequena ainda, lembro apenas de uma profusão de velas postas pelos devotos numa bandeja redonda aos pés da Virgem - o que, para o meu irmão Eugênio, que tinha então 2 ou 3 anos de idade, era um indício seguro de que alguém fazia aniversário.
No Crato, a imagem de Nossa Senhora da Penha, padroeira da cidade, trazia ao colo o Menino Jesus e pisava sobre répteis, a força do gesto contrastando com a ternura, paz e profunda compaixão que seu rosto transmitia. Dessa imagem lembro, com detalhes. Do altar, ela assistia à multidão que vinha rezar na praça, consolando os aflitos, trazendo esperança....
Nós nos misturávamos a essa multidão, mesmo se estávamos vivendo um outro lado da festa: carrosséis, roupas novas, paqueras. Mas os que sofriam vinham rezar, e não posso esquecer aqueles rostos expectantes, que traziam, como se talhadas em pedra, as marcas do difícil cotidiano que define o modo de vida dos esquecidos, dos que tanto esperam em vão. Ali se formava para mim esse nexo: de um lado, o sofrimento e abandono do nordestino, do outro, a compaixão da Mãe de Deus.
A Festa da Padroeira, no mês de agosto, tendo o seu grande final em 1o de setembro, era um grande acontecimento: mais remotamente, quando eu era bem criança ainda, lembro das pregações de frei Damião, que sentia medo dos fogos de artifício e reclamava a todo momento dos "fogueteiros". Se não lembro - e certamente não compreendia - as outras coisas que ele dizia, guardei porém a expressão terrível de seu rosto e sobretudo o olhar fascinado e febril das pessoas na praça. Quando terminava, eu sempre ficava com medo do fim do mundo, que ia acontecer ali mesmo, no Crato, e a qualquer momento. Mas havia os vivas a Nossa Senhora da Penha, e hoje compreendo que de sua imagem vinham as idéias de mediação, de aliança entre Deus e os homens, Mãe compassiva que compreende e aceita os tortuosos e humanos canais através dos quais escutamos a Palavra de Deus.
E havia as procissões.
Ah, as procissões e suas insondáveis trilhas na memória. Aquele caminhar uníssono da multidão "se arrastando que nem cobra pelo chão" e de alguma forma elevando-se para o céu, livre de sistemas de sons e de apoios eletrônicos. Era um céu poderoso, definidor de destinos, re-ligando todos nós a um sobrenatural cheio de símbolos ao mesmo tempo fortes, seguros, apavorantes, mágicos. Havia o Deus Pai, fé, racionalidade e sentido da vida, que meus pais traziam. Eram outros porém os Seus sinais, trazidos pela Festa da Padroeira, dispersos naquele mundo mágico, supersticioso, festivo, sombrio e berrantemente colorido dos santos, promessas, esperança e medo.
A emoção das procissões era única, "re-ligante", transcendental e telúrica. A Senhora da Penha vinha em seu andor, tão bonito na ingenuidade do ornamento de cetim e flores, solenemente carregado por homens vestindo opa - que era uma espécie de capa, preta e vermelha. O sagrado tornava-se parte integrante da vida, e a vida estava ali presente de todos os modos. Os hinos, os benditos, os agudos desafinados elevavam-se aos céus, seguramente ouvidos por Deus. As vozes estridentes, um cantar do qual vinham desarmonia e beleza, silenciando as conversas e instalando um sentimento fundo, meio bárbaro, de reconhecimento do sobrenatural, da desestabilidade, da miséria e da glória nossas, que súbito se faziam as mesmas para todos, naquele mundo de tantas desigualdades.
Ainda hoje os cânticos religiosos, no côncavo das igrejas, me tocam um pouco dessa forma.
Ainda hoje sinto as palavras de Luiz Gonzaga no "Baião da Penha":
"Nossa Senhora da Penha
Minha voz talvez não tenha
O poder de te exaltar
Mas dê bênção, padroeira,
Pra sua gente brasileira
Que quer paz pra trabalhar".
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