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"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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sexta-feira, 15 de abril de 2011

Rasga-Mortalha


--- D. Betilde , de novo ?

A velhinha , ao ouvir aquelas palavras insidiosas e enigmáticas, ficou amuada pelos cantos da casa. Tinha plena consciência : o destino é que havia traçado aquelas linhas sinuosas da sua vida. Mas, que jeito? Por outro lado, também, carregava consigo a certeza de que o temor da solidão a havia impelido a tantas reincidências, além, claro do charme pessoal e de um estranho fogo que ainda teimava em lhe arder pelas veias, mesmo sob o gelo inexorável do tempo. O certo é que os casamentos se foram sucedendo. O primeiro marido, Afonso, caixeiro-viajante, dormiu na direção do carro e despertou no paraíso. Deixou-a viúva nova e sem filhos. Botelho, homem sisudo, coletor de impostos, engraçou-se de uma Betilde fogosa, na flor dos anos, e arriou por ela os quatro pneus. Casou-se, viveu com a esposa uma felicidade fulminante de cinco anos, tão fulminante que acabou o fulminando, de um enfarte, nas portas dos quarenta. Betilde balzaquiana, novamente solteira, passados dois anos de luto oficial, começou a sofrer assédio de um tal de Leontino. O homem era dono de um pequeno armarinho e também enviuvara há poucos meses. Betilde achou o assédio precipitado, mas entendeu o pretendente: já se encaminhando para os setenta, era material perecível e que não podia ficar exposto às intempéries da solteirice por muito tempo. Terminaram no altar. Leontino, por incrível que possa parecer, foi um marido exemplar e resistente: manteve-se vivo, nas garras da mulher, por uns vinte anos, até que um belo dia dormiu na terra e acordou no firmamento. A partir desse velório, a fama de Betilde como rasga-mortalha começou definitivamente a se firmar. Fama que, se diga de passagem, os anos mostraram nada ter de exagero.

A partir da viagem celestial de Leontino, os casamentos de Betilde se sucederam. Com ela já beirando os sessenta, os novos pretendentes já não pagavam IPVA. Homem maduro só cata mulher nova. O que lhe ia sobrando eram aqueles já idosos, passados na casca do alho e que temiam as mocinhas com medo de não se refestelarem sozinhos, mas num banquete coletivo. Zivaldo, Geronildo e Marcelino seguiram a mesma sina dos seus antecessores, apenas desfrutaram dos prazeres e achaques matrimoniais por pouco tempo. A famosa frase : --- D. Betilde, de novo ? Foi pronunciada justamente por Salustiano, um antigo conhecido da rasga-mortalha, ante o caixão do sexto marido da nossa serial-killer: o tabelião aposentado Marcelino Florentino Parahyba, homem versado em almofadas, carimbos e reconhecimentos de firmas. Betilde, oitentona, já parecia não ter mais lágrimas para derramar: secara o veio . Talvez, por isso mesmo, tenha se amuado ante a insinuação algo maldosa de Salustiano: faltava-lhe água para lavar tantas máguas. De tantos enlaces, restara-lhe, no entanto, apenas um filho, nascido da mira certeira de Leontino , o menino carregava oficialmente o nome viril do pai, mas era chamado carinhosamente de Júnior.

Betilde decidiu baixar o facho após a partida do sexto esposo. Já era tempo ! E mais: quem diabo iria querer uma oitentona e ainda pior: com um cartel terrível de nocautes ? Aquietou-se, fez-se beata, botou para debulhar terços e mais terços: alma no purgatório para sua intercessão é o que não faltava! A multi-viúva esqueceu apenas um detalhe. Os tempos tinham passado e a modernidade viera com seus milagres. Fora-se o tempo em que homens maduros pronunciavam aquela frase famosa : “Enquanto houver língua e dedo, mulher não me mete medo!” Pois bem, a modernidade havia trazido consigo o viagra e o adiamento da morte viril. Imaginem, pois, impulsionado pelo novo espinafre do Popeye, quem começou a arriar uma asa para Betilde ? Nada mais nada menos que o fofoqueiro do Salustiano. Entre dentes, ele prometeu aos amigos que mandaria a serial killer desta para melhor. Vingaria seus seis antecessores. Betilde refugou no primeiro momento: Vade retro satanás! Não esquecia a frase famosa dele diante do esquife do pobre do Marcelino. Mas o assédio perdurou, a solidão falou mais alto ( Júnior fora tentar a sorte em São Paulo) e a matrimoniomania de Betilde reacendeu. Depois de uns seis meses, voltou ao altar agora ao lado de um grande e turbinado Salustiano.

Seis meses depois, os amigos choravam o passamento do amigo. O vingador batera catolé. Qual a causa mortis de Salustiano ? Ninguém sabe ao certo, mas existem algumas evidências. À noite, no velório todos notaram um volume excessivo elevando a mortalha na altura dos países baixos do noivo. Parecia o mastro central de um circo forçando a lona para cima, em direção aos céus. Vendo a mortalha prestes a se romper no meio, enquanto uma Betilde chorosa fungava num canto, um amigo comentou:

--- Menino, pelo visto, não é só D. Betilde que merece o apelido de Rasga-Mortalha, não ! Salustiano, também, manda ver !


J. Flávio Vieira

2 comentários:

Anga Mazle disse...

Ótima história, J. Flávio. Seu modo de narrar, com um distanciamento estratégico que só permite que o julgamento, sempre ironico, aflore com moderação, me lembra o do grande Sergio Porto.

Um abraço

jflavio disse...

Abraço à Angla pela paciência em ler o texto e por ter apreciado