Versatilidade era com ele mesmo. Nordestino de Pernambuco, mas radicado no Rio de Janeiro desde a mais tenra idade, o autodidata Nelson Rodrigues, um dos nossos consagrados escritores (e teatrólogo de mão cheia), também prestava sua competente colaboração à crônica esportiva tupiniquim, a partir da sua concorrida coluna diária, reproduzida em diversos jornais Brasil afora.
Torcedor declarado e apaixonado do Fluminense (o famoso carioca “tricolor das laranjeiras”), ainda assim Nelson Rodrigues procurava ser o mais imparcial possível em suas memoráveis análises e na didática exteriorização dos posicionamentos, não se furtando de colocar nas alturas ou dá o devido crédito a um Vasco, Botafogo, São Paulo, Santos, Cruzeiro e outros, quando faziam por merecer. Na análise individual dos times, então, os chamados jogadores “fora-de-série” (Ademir, Garrincha, Zizinho, Pelé, Tostão, Gérson, Nilton Santos e outros) mereceram crônicas épicas, marcantes, definitivas, imortais, até.
No entanto, um pequeno detalhe o importunava, o deixava por demais pessimista, cabreiro e, até, um tanto quanto descrente: a explosiva e latente instabilidade emocional que se apossava dos nossos principais atletas, ou a recorrente metamorfose que os acometia, quando, convocados a defender a Seleção Brasileira, tinham que se defrontar com os “branquelos galalaus europeus”, também conhecidos por “cinturas-duras”, tal a falta de habilidade para tratar a bola (aqui ou lá fora, em Copas do Mundo, ou não). Era uma tremedeira generalizada, uma basbaquice sem tamanho, uma “defecada” coletiva, um colossal e invulgar acovardamento. Parecia até que o brasileiro não passava de um desclassificado qualquer, um ser humano de quinta categoria, um crônico derrotado de primeira hora. E foi buscando retratar tudo isso que, frasista de primeira hora, ainda que a contragosto Nelson Rodrigues chegou à conclusão nada agradável, ao diagnóstico por demais cáustico, ao humilhante vaticínio de que o jogador brasileiro se deixava possuir, em tais ocasiões, por um incompreensível “complexo de vira-lata”.
Se tão pejorativa denominação repercutiu ou não no íntimo de cada um (teriam mesmo “tutano” pra absorver e decifrar tal conceito ???), só uma espécie de tese sócio-antropológica pra efetivamente comprovar. Fato é que, depois daí, depois das muitas decepções patrocinadas aqui e alhures, depois dos seguidos fracassos pelos campos de futebol mundo afora, deu-se como que uma espécie de “estalo”, uma bem-vinda “ressurreição” do futebol do Brasil, culminando com a conquista do título de “Campeão Mundial”, lá na longínqua e siberiana Suécia (em 1958), quando Pelé e, principalmente Garrincha, assustaram os “branquelos” e emudeceram o mundo. Repetimos a dose em gramados do sul-americano Chile (em 1962), no apogeu de Garrincha (já que Pelé, lesionado, não participou). Mas fracassamos humilhantemente na Inglaterra (em 1966), em razão das brigas políticas internas dos dirigentes de então (já aí, os jogadores brasileiros começaram a ser vistos com outros olhos no “velho continente”, a ponto de aqueles que mais se destacassem serem adquiridos por times de lá). No México (em 1970), com a paz restabelecida, formamos um imbatível time e conquistamos, em definitivo, o cobiçado troféu Jules Rimet (Copa do Mundo).
A partir daí, todo mundo sabe da história, de cór e salteado: a televisão literalmente “entrou em campo”, dedicando um valioso espaço (e, principalmente, transmitindo as partidas “ao vivo”, formando uma legião de novos admiradores), providenciando patrocinadores/anunciantes de peso, profissionalizando de vez o ambiente, e transformando o futebol numa milionária fonte de recursos e prestígio (basta dizer que a FIFA, associação gestora do esporte, hoje tem mais associados que a própria ONU).
Nossos jogadores começaram a ser vistos com outros olhos no “velho continente”, estabeleceu-se a convicção de que se tratavam de verdadeiros “artistas” no trato da bola e, assim, abriu-se um mercado por demais atraente e promissor e o futebol virou a coqueluche que é hoje.
Mas, como uma mesma moeda sempre nos apresenta duas faces distintas, aqui a policitagem suja não tardou a aparecer: interesses escusos “pintaram no pedaço” (dirigentes que ao assumirem nada tinham, saíam milionários ao final de cada mandato); a mediocridade fez moradia (como entender como um jogador (???) horroroso como um tal “Valdir Papel” tenha tido oportunidade de envergar a gloriosa jaqueta do Vasco da Gama ???); eclodiram escândalos monumentais (as eleições da FIFA tornaram-se um rentável balcão de negócios de mão dupla: pra eleitores e eleitos); a pilantragem e o mau-caratismo deram o ar de sua graça (Eurico Miranda, no Vasco, que o diga); jogadores, mesmo os “pernas-de-pau”, passaram a faturar valores astronômicos e fora da realidade do país, resultando numa corrida desenfreada em busca do “novo eldorado”; e, enfim, estabeleceram-se de vez os empresário-aproveitadores (um verdadeiro exército de mafiosos espertalhões), resultando em muita gente ficar podre de rica às custas do futebol.
Alfim, e pra encurtar a história, apesar disso tudo faturamos o título em mais duas oportunidades (Estados Unidos, 1994 e Japão, 2002) e muito, mas muito mais importante: mandamos para o espaço sideral, remetemos ao cafundó-dos-infernos e implodimos de vez e definitivamente com o tal “complexo de vira-lata”, já que hoje respeitados em todo o mundo como os “reis do futebol”.
Mas aí já é outra história.
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segunda-feira, 13 de junho de 2011
"Complexo de vira-lata" - José Nilton Mariano Saraiva
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