Talvez uma das mais trágicas conseqüências da modernidade tenha sido a abolição definitiva da calçada. Algumas décadas atrás, a calçada era uma extensão da nossa casa, uma espécie de play-ground que freqüentemente se estendia para as ruas próximas , ainda com pouca iluminação e sem a feiúra negra do asfalto. Sim, o asfalto que se alastrou pelas ruas como uma tarja preta identificadora do luto das pequenas vilas com a perda do seu ingênuo e doce provincianismo. As calçadas fazem hoje parte integrante das avenidas e não das residências que elevaram seus muros e grades, em feitio de prisão e observam temerosas a vida lá fora que sua, arde e sangra. Doce tempo aquele em que as famílias, à tardinha, punham as cadeiras na calçada , olhando para a lua e mastigando as últimas e picantes novidades da Vila. Ao seu derredor, as crianças brincavam de “Roda”, de “chicote queimado”, de “esconde-esconde”, de “Lagarta Pintada”, “Cadê-o-Grilo” e de “Bandeira”, sob o apaziguador olhar dos adultos. Bons tempos aqueles! A vida era mais simples e corriqueira, as mazelas do mundo não nos atingiam, a violência era um simples capítulo no nosso Livro de História Antiga. Éramos felizes sem que ao menos o percebêssemos . E no inventário dos nossos bens o que constava? Uma rua barrenta, uma lua plácida, a mão amiga do vizinho, uma baleadeira , uma bila , um pião... A felicidade fluía fácil desses objetos como ,se por encanto, tivesse sido tocada pela condão da Fada Madrinha.
Nem é preciso dizer que este tempo está definitivamente sepultado. A tecnologia triturou impiedosamente a simplicidade e o Consumo pôs regras sinistras e colocou um Código de barras na nossa felicidade.Vivemos todos “No Limite”, nos matando numa batalha sem vencedores. Quem vai para o trono ? Ao Vencedor, o Enfarte!
A tecnologia encurtou, enormemente, a distância virtual e alargou, infinitamente, a nossa geografia real. O Celular, a TV, o Fax, a Internet nos ligam em segundos à Indochina mas já não somos capazes de conhecer o vizinho que divide a mesma parede do nosso apartamento. Nem o soldado, no Iraque, tem o direito de saber quem o matou. Esta mudança na geografia mudou ,também, a história das nossas relações humanas. Falta-nos o toque, o olho-no-olho, o abraço, o beijo. Não mais vivemos uma realidade mas uma virtualidade e todos nossos podemos ser eliminados , a qualquer momento, como um simples monstrinho da primeira fase de um videogame. Bons tempos aqueles da cadeira na calçada, quando ainda existia um amigo palpável e uma lua no céu....
J. Flávio Vieira
J. Flávio Vieira
Um comentário:
Zé Flavio,
Mesmo nas cidades como a nossa - Crato amado - ainda aqui e ali existem "pequenas ilhas" que resistem e ainda mantém o hábito de conversarem nas calçadas. Ali pela Zé Carvalho, pela Pedro II, ou nos bairros que contam com remanescentes dessa prática ainda do tempo em que as crianças faziam sua "festa" todas as noites enquanto pais, mães e avós (além de vizinhos) se reuniam para "marcar" os eventos da cidade.
O que espanta essa gente nos dias de hoje é a possibilidade de assaltos, uma insegurança que se assente sobretudo pela impunidade.
Porém, contudo, todavia, foi muito agradável te ler e rememorar todas essas brincadeiras que embalavam nossas noites de outrora, à luz da lua ou do velho gerador movido pelas águas da nascente.
Abraço,menino...
Claude
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