Nem mesmo uma ameaça de enfarte o tirou do sério. Afinal estes problemas de coronárias podem aparecer em qualquer idade, não é mesmo? Deve ter sido o diabo do cigarro, pensou lá com suas cãs. Um dia, no entanto, um fato corriqueiro lhe fez acordar para a constatação da inexorável marcha do tempo. Perto de casa, viu alguns rapazes se preparando para um rachinha num campo de várzea. Do alto dos seus vinte e poucos anos assumidos, inscreveu-se para a partida, meio a contragosto dos meninos. Acreditou que eles temiam a qualidade reconhecida do craque que pensava que ainda era. Bola vai, bola vem, atacando de ponta direita, quase não recebia nenhum passe. É que havia um meio de campo do seu time que amarrava a pelota e não passava para ninguém, aquele fominha que não entende o futebol como um esporte coletivo. Lá para as tantas, recebendo um passe da defesa, Lírio correu pela lateral do campo e cruzou para o fominha, partindo célere para o ataque. De repente estava livre, sem marcação, diante do gol, esperando o impossível : que o fominha lhe devolvesse a bola! O unha-de-fome se enrolou com a defesa e terminou perdendo a jogada sem nem imaginar em cruzar de volta a redonda. Nisso, o centroavante, furioso gritou:
--- Filho da mãe, fominha de uma figa, passa essa bola, tu não tá vendo o Velho ali solto, solto ?
Lírio olhou para um lado e para o outro procurando o velho citado e não encontrou. Foi quando descobriu o impensável : Era ele ! A partir dali, com a dura verdade pesando-lhe aos pés, não mais rendeu. Terminada a partida, decidiu: jogo agora, só de tabuleiro!
O certo é que a ficha caiu súbito, mas não sem resistência. Lírio aposentara-se de um emprego burocrático na prefeitura. Voltara para casa, mas teve sérios problemas de adaptação. Por várias razões. Primeiro nada entendia de trabalho doméstico e, no intuito de ajudar, começou atrapalhar e muito. Depois , tinha uma relação meramente burocrática com D. Lindalva, a esposa: “Tetos iguais, corações separados”. A proximidade como que diminuiu ainda mais a temperatura da relação e os congelou. Tanto pesou a aposentadoria que o enfarte de Lírio brotou, possivelmente, da inadaptalidade às novas funções. Recuperado, resolveu, então, comprar um carrinho velho e trabalhar como taxista. Não ganhava lá essas coisas, passava a maior parte do dia no ponto, mas de conversa em conversa, de fofoca em fofoca, o restinho de vida ia passando à sua frente com a calma devida, com a anestesia calculada.
Trabalhando com uma velha Brasília 86, Lírio percebeu que aquilo não era um carro, mas quase um casamento civil. Vivia na oficina mais do que na praça. Quando lhe começaram a aparecer os achaques da idade teve a perfeita consciência de que não se diferenciava muito da velha fubica. Como ela, tinha folga na direção, rolamentos gripados, pneus carecas e estava saltando de marcha de quando em vez.
--- Qualquer dia desses, eu ou ela sobramos na curva, ou quem sabe os dois ?
Semana passada, arranjou uma namorada, numa das corridas. Tinha idade de ser filha do Lírio. Levou-a para um motel. Começou como quem come papa: pelas beiradas. Na hora do venha a ver, até que o motor velho reagiu acima do esperado. Estava todo serelepe. Demorou , demorou, mas nada de chegar ao ápice... nada! Suado, pensou com sua samba canção:
--- Meu Deus ! Ia tão bem ! O que terá sido dessa vez ? Será que agora foi o jiqlê do carburador que entupiu ?
J. Flávio Vieira
2 comentários:
Dr. José
No desenrolar da história, senti claramente o diagnóstico do médico
competente.
Belo texto, cheio de humor, como sempre.
Adorei. Mas o Mercury teve o seu valor, temos que admitir !
Grande abraço !
Grande abraço a Edilma, artista tão sensível e que guarada consigo os segredos da eterna juventude.
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