A fila do supermercado era longa.
Dava tempo de muita conversa.
O fio da meada era o preço do ovo de Páscoa: ela ia comprar na cidade,
segundo uma amiga, era mais barato.
Argumentei que não valia a pena,
a passagem do ônibus equivalia à diferença.
Contou-me que era cobradora de ônibus,
tinha carteira para andar "de graça".
Disse-lhe que deveria ser por isso que seu rosto me era familiar.
Cabelo sarará, olhos verdes, pele clara,
certamente cruzamento de judeu com negro.
Ponderou que talvez não fosse ela quem eu pensava,
pois há dois anos estava de licença.
Havia sido vítima de 6 assaltos e tomara a decisão de pedir demissão.
O gerente lhe sugeriu licença médica. Categórica, observou
que o conselho do gerente era melhor situação
para a empresa e para ela:
para a empresa, porque era sabido que cobradores de ônibus
costumam reaver, através da Justiça,
o dinheiro com que ressarcem a companhia quando ônibus são assaltados;
para ela, porque ainda devia o correspondente aos 2 últimos assaltos
e durante a licença não era permitido que lhe fizessem descontos no salário.
Melhor então que ficasse à custa do INSS.
Interrompi minha recém-conhecida nesta parte da conversa
e confessei minha surpresa por não saber
que os cobradores dos ônibus assaltados arcam com tal prejuízo.
Explicou-me que os donos das empresas fazem isso
para evitar combinações entre cobradores e assaltantes...
Nessa altura, atônita, ainda pude perguntar-lhe
se em alguma das vezes havia sido agredida.
Fez expressão de sofrimento e com um gesto de cabeça afirmou que sim.
Começou a falar baixinho, só para mim,
deixando curiosas nossas vizinhas de fila.
Foi-se chegando, cabeça quase encostada na minha,
cochichou que o pior acontecera fora do ônibus.
Costumava sair de casa às 3 horas da manhã, porque às 4
partia o primeiro ônibus da garagem.
Estava com a farda de cobradora
e mesmo assim fora estuprada por 3 homens.
Nas ocorrências dentro do ônibus, pelo menos, os assaltantes
levavam somente o dinheiro que depois lhe descontavam.
Nessa vida já se iam 4 anos.
Agora seus nervos estavam esgotados.
Foi licenciada e talvez lhe aposentassem.
Na última eleição para deputado o gerente lhe visitara em casa
e advertiu-lhe de que o INSS podia ter métodos capazes de reabilitá-la,
sobre isso não sabia ao certo. Mas o motivo da visita era lembrá-la
que o dono da empresa era candidato
e contava com o voto dos empregados.
Em tom de quem extrai confissão perguntei-lhe se havia votado nele.
Secou as lágrimas com o dorso da mão que segurava
um pacote de margarina.
Outra vez, fez expressão de sofrimento
e com um gesto de cabeça afirmou que sim.
Ilustração do artista plástico cearense Mário Sanders
por Sônia Lessa
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