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domingo, 23 de maio de 2010

Pintando o sete - Mário Eduardo Viaro (para Socorro Moreira )

Palavras usadas nos sistemas de contagem da humanidade revelam empréstimos culturais que remontam à pré-história

Mário Eduardo Viaro

Entre as classes gramaticais mais estáveis, a dos numerais é das que melhor se mantêm nas línguas, sendo forte indício para afiliações de línguas nos estudos histórico-comparativos. É verdade que nem isso é totalmente certo: o japonês tem uma lista de numerais de origem chinesa independentemente dos numerais japoneses típicos, e o mesmo vale para línguas orientais como o coreano. Nas indoeuropeias, porém, os numerais possuem um grau de conservação bastante grande.

Seu conservadorismo formal se deve ao fato de serem uma espécie de tecnologia e, em última análise, um empréstimo cultural que remonta à pré-história. Por isso, sistemas distintos podem conviver na mesma língua (como no japonês) e tratamentos diferentes são dados a ordinais e números muito grandes. Entender suas transformações fonéticas é um bom caminho para a compreensão dos métodos utilizados pela etimologia.

Mário Eduardo Viaro é professor de Língua Portuguesa na USP, autor de Por Trás das Palavras
(Globo: 2004).

A ideia do "um"

O número "um" é um dos mais instáveis nas línguas indo-europeias. A forma portuguesa flexiona-se em gênero e número e aponta para o latim unus. Sob a forma do acusativo unum, promoveram-se as mudanças fonéticas usuais: queda do -m final (apócope) e queda do -n- intervocálico (síncope), com nasalidade da vogal anterior, o que resultava em duas vogais (um u nasal e outro u, ou o, átono). Essa forma resultante gerou a grafia moderna "um".

A palavra no gênero feminino, una (na verdade na forma acusativa unam) sofreu as mesmas mudanças. Ainda hoje, na língua falada, como provam as gravações feitas pelos foneticistas, é ainda muito comum a forma resultante diretamente do latim, ou seja um u nasal seguido de a, que ainda existe no galego (grafado por meio de um dígrafo bastante inusitado: unha). Esse encontro entre o u nasal e o a causava normalmente a perda da nasalidade, como se vê na palavra "lua", que vem de lunam (embora ainda haja hoje pessoas, normalmente muito idosas da zona rural, que pronunciem o u nasal de "lua", como provam estudos dialetológicos).

No entanto, no caso do numeral, dada a sua frequência (intensificada pelo uso também como artigo indefinido), a solução foi transformar a nasalidade do u em uma consoante: "uma". Esse fenômeno se chama epêntese e há casos parecidos com o i nasal: o latim vinum se transformou em vio (com o i nasal) que, por fim, se tornou "vinho". Perceba que o ponto de articulação da consoante nasal depende da vogal anterior: no caso do u, gera-se uma bilabial (m), no caso do i, uma palatal (nh).

O que vem primeiro

O ordinal "primeiro" vem de primarium, acusativo de primarius, por sua vez, derivação sufixal de primus, que era a forma usada em latim clássico. A irregularidade de primus se justifica pelo fato de ser um superlativo do advérbio *pri. Assim, a terminação -mus é a mesma de -issimus que gerou a terminação -íssimo em português. Esse *pri, que aparece como sufixo, significa algo como "antes". Conclusão, primus seria "o que vem antes de todos", pois os ordinais tinham a característica de apresentarem-se como uma fila de seres.

A mesma metáfora se vê em inglês first e em alemão erst, em que -st também indica superlativos e fir- remonta a "antes" no inglês, por exemplo, em be-fore, e er- também, no alemão, está vinculado a essa ideia, como em eher (antes, de preferência). Em russo também vemos a mesma metáfora na palavra pervyj e em grego prôtos também.

Já o número "um" possui a mais complexa etimologia dos numerais, pois remonta a uma forma indo-europeia *Hoi(H)nos, que não é universal (mas se vê no alemão eins e no inglês one). Outra palavra para o mesmo significado foi *sem que aparece, por exemplo, no latim semel "uma vez". Em grego, a aspiração do s- inicial gerou a forma hen. Vemos a mesma forma em simplex (simples), que proveio de *sem-plek-s "com uma só dobra", em contraposição com *kom-plex (dobrado junto), donde viriam "complexo", "complicar", "complicado" etc.

"Dois" se impôs ao mundo

Os numerais subsequentes fornecem as maiores comprovações de que o que dissemos para o "um" está correto. A palavra "dois" é a forma dialetal do antigo dous que se impôs em quase todas as falas, embora não faltem pessoas que ainda pronunciem a antiga palavra, em sua versão monotongada, em Portugal ou mesmo no Brasil (há registros em Mato Grosso, no Pará e nos açorianos de Santa Catarina).

Esse dous vem do latim duos, acusativo de duo, que, por sua vez, vem do indo-europeu *duoh1, por meio do ensurdecimento das consoantes (a chamada Lei de Grimm, da qual já falamos). Dele se deriva também o inglês two e o alemão zwo, palavra que se usa ainda em dialetos e na língua oficial, para dizer-se o número dos telefones. Como o um, flexiona-se a palavra para "dois" e o português tem o feminino "duas", que é a mesma forma do acusativo latino de duae. O espanhol perdeu essa forma do feminino e somente diz dos, que corresponde à monotongação de dous. O ordinal "segundo" é uma forma do verbo sequi latino: o étimo secundus significava, originalmente, "aquele que segue" o número "um".

A inflexão do "três"

O "três", diferentemente de "dois", não flexionava (a não ser no neutro tria, que desapareceu completamente). Os demais números também não tinham flexão alguma. A forma indo-europeia era *treies. No germânico, a Lei de Grimm transforma o t numa interdental, que é preservada no inglês three e no islandês. O alemão drei, porém, mostra que as demais línguas germânicas optaram por mudar esse som, considerado instável.

O que há no "quatro"

O latim quattuor, donde provém o numeral "quatro", mostra notável conservação da consoante *kw- do indo-europeu *kwetuôr. Nas outras línguas, esse som se transformou em uma labial (como ocorreu, mais tarde, também com o romeno patru).

Assim, em gótico, a forma era fîdwor, que equivale ao four do inglês e ao vier do alemão (o v do alemão tem som de f).

Os problemas do "cinco"

O "cinco" apresenta uma série de problemas. O indo-europeu dizia *penkwe, forma que, por assimilação regressiva, se tornou quinque em latim (em vez do esperado *pinque). Já o germânico fez uma assimilação progressiva *penpe, que originou o fünf em alemão. O primeiro qu- se simplificou no latim vulgar (como se observa em italiano cinque).

Na Península Ibérica, por influência analógica do "quatro", a antiga palavra cinque modificou sua vogal final e se tornou "cinco". Tais analogias são comuns em numerais que se seguem: por exemplo, no russo (e nas demais línguas eslavas), o esperado número para "nove", a saber *nevjat', se tornou devjat' por causa do número
seguinte: o "dez" se diz desjat'.

As transformações de 6 a 7

O "seis" é uma transformação do latim sex. Observe que x é uma consoante dupla [ks] e o primeiro [k] tem tendência a vocalizar-se nas línguas românicas: noctem se tornou "noite", pectus se tornou "peito", factus se tornou "feito" etc. A forma indo-europeia era *suek's, donde também o inglês six e o alemão sechs.

O "sete" vem do indo-europeu *septm, donde se vê também não só o latim septem mas também o grego heptá (com a mesma aspiração do s- como visto em *sem e vocalização das nasais silábicas), o inglês seven, o sânscrito saptá etc.

A evolução do "oito"

O "oito" tem a reconstrução atual do indo-europeu *h3ek'teh3. Essas consoantes h1, h2, h3 são as chamadas laringais saussurianas, largamente aceitas pelos indoeuropeístas. As palavras indo-europeias são construtos e nenhum pesquisador sério imagina pronunciá-las. De *h3e- nasce o o- latino de octo, por exemplo. Em alemão, a palavra é acht, pois o [k] tende a ser pronunciado como o j do espanhol (grafado ch). Em inglês, temos eight, com um arcaísmo gráfico gh que não é pronunciado hoje em dia, mas lembrava o antigo som equivalente ao do alemão. Da mesma forma que noctem deu "noite" em português, octo gerou "oito". Observe-se que noctem é o acusativo de nox e remonta ao indo-europeu *nokwts, que gerou o grego nıks, o gótico nahts (cf. inglês night, alemão Nacht) e o sânscrito náktam.

Noves fora, 10

O número "nove" provém do latim novem, que sofre a comuníssima apócope do -m. A palavra indo-europeia era *h1néun, donde também grego ennéa, gótico niun (inglês nine, alemão neun), sânscrito náva. Todos os fenômenos fonéticos são facilmente explicáveis (a transformação do *n silábico indo-europeu em *a, por exemplo, é igual à transformação do *m de *septm).

Por fim, o dez viria de *dek'mt, donde latim decem, sânscrito dasha, gótico taihun, como se pode ver no inglês ten e no alemão zehen (a transformação do *d em t no germânico segue a primeira Lei de Grimm e o t em z em alemão segue a segunda).

Fonte: Revista Língua Portuguesa

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