Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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segunda-feira, 26 de julho de 2010

Crônica de uma festa de casamento- por Ana Cecília S.Bastos



Voltando de Ubajara, precisaria de pelo um dia inteiro só para me acalmar. Não o tendo, escrevo no avião, urgentemente, aflita para dar espaço a tantas palavras. Tudo me deixa à flor da pele, este ser de uma tribo, esta herança índia pela qual sou parte dessas serras, desse recorte verde, lá do interior do mato, e me sinto tão integrada à chuva, à neblina, aos raios e relâmpagos, eu que sou tão alérgica. Este encontrar-me remetida a estar comigo vem de um modo tão veloz, vai tão longe e tão intenso que não consigo conter. Não penso: fico sabendo disso pelo olho, pelo olfato, pela pele, pelo estômago, e ainda pelas cores, dentro e fora, luz e sombra das casas à beira da estrada.
O avião está decolando agora. De um lado, vejo a Fortaleza moderna, com seus edifícios, querendo ser Ipanema. Do outro lado é bruscamente, sem transição, área rural. Prefiro olhar para esse lado de casas, campos, serras e vales, verde e névoa.
O senso térmico me remete ao denso que era crescer no interior, aprender a viver aqui, em tribo, essa colagem tão forte do tribal em nós, da qual é impossível falar, da qual calar é perder sentido.
Não sei se pelo cansaço, mas estou à flor da pele. São as casas à beira da estrada, e eu diante delas sem precisar ser forte, somente desarmada-, com vontade de chorar por tudo. São as casas à beira da estrada, e seu cheiro que é real de tanto que a visão das casas entra em mim tocando o que está lá dentro impregnado.
É o cheiro da cozinha da casa de vovó Sinhá, indescritível, mas impossível de desconhecer. Um cheiro feito de silêncio, de gestos suaves, de passos suaves pela cozinha em direção à sala onde eu lia, na cadeira de balanço. Ou onde talvez me escondesse atrás do livro fugindo do sentimento tão intenso e desconhecido da vida contida em apenas estar ali, amando o silêncio, sons e o cheiro da cozinha. O cheiro que vinha do fogão a lenha - torresmo, um vago chá de eucalipto ou sabugueiro, feijão de corda novinho cozinhando em panela de barro, a figueira no quintal, o fumo de rolo que vovó mascava escondido, podendo ser frágil, a gente podendo ver e saber disso. Esse olhar de avó que é lembrança tão doce, e eu queria saber chorar de saudade.
Esse lugar e tempo amo, a paz daquela esquina e o café feito bem fraquinho e com bastante açúcar para que a gente pudesse tomar, e o bom não era nem o café, mas poder estar sentados em volta da mesa, escolhendo qualquer cadeira, escolhendo copo e colher ("de ouro" o alumínio amarelo, melhor ouro não havia). E conversar, e bastar pedir algo e ser sempre acolhido de alguma forma, naquela casa de poucos e sempre os mesmos objetos, que do mesmo modo estão ainda arrumados, em alguns armários e na memória.
Bolinhas de homeopatia, guardadas no armário de copos, que podia ser aberto sem medo, porque o andar discreto era de ser suave e delicado, e não suspeitoso ou vigilante. E mesmo vovô, que quebrava o silêncio quando vinha toc toc com suas muletas, se era bravo (contam que no dia seguinte ao casamento ele vendeu o violão de vovó, que tocava e cantava lindamente), jamais o era conosco. Podia se divertir infinitamente nos contando "causos" de almanaque ou nos deixando ficar perto da janela escutando com ele as notícias da cidade que seu amigo Pedro Maia trazia.
E as palavras se distraem e migram na frase, invertidas na lembrança que teimosa vem pela pele, pelos cheiros.
Fazia em cima da serra do Araripe. Engraçado perceber que era natural sentir frio e ficar com frio, como também sentir fome de coisas especiais. Não era "injusto", pois era assim com todos, e o certo era ser forte, não ligar, não criar problemas.
Se não chovesse - quando mãinha, movida pelo próprio medo de temporais, deixava os menores e fazia uma blitz em todas as camas -, a gente sempre se virava. Eu tinha 7, 8 anos e não sabia dormir em rede como os primos. Pedia a minha prima para me cobrir e ela ficava fingindo não entender ("de graças.."?) até que eu encontrasse um sinônimo em relação ao qual ela não pudesse mais fazer trocadilhos ou se cansasse da pirraça e viesse me ajudar com aquela tão terrível dificuldade. Aliás, eu não gostava de adormecer. Um certo medo da noite, que não era de chuva nem de trovões, mas da noite em si, com tudo que povoasse o silêncio ou a escuridão. Até hoje não consigo mesmo dormir se não me distrair com alguma outra coisa de modo a não perceber a noite em si. Às vezes íamos para as camas dos irmãos, ou trazíamos para a própria cama os nossos bichos, fugindo à vigilância - pois não era para gatos e cachorros dormirem dentro de casa. Lembro também da gente “roubando” os bichos das camas uns dos outros.
Isto de ser irmãos me faz chorar. Estou ficando "dismilingüida", quem vai agüentar?
Minha mãe me conta um curativo que fez na farmácia quando machucou o braço e que, em seu modo de ver e de minha tia, precisou de uma limpeza radical, brutal. Meu estômago fica embrulhado, tenho náuseas, não suporto essa simples descrição. Não suporto muita coisa, e se eu deixar qualquer bobagem me atinge.
Lembro quando este homem agora casado, Emanuel , era pequeno, eu já na universidade, e ele leva um corte fundo acima do olho, sangue que não acaba mais, eu só em casa de pessoa adulta, e vou levá-lo ao Pronto Socorro, que ficava pertinho. Ele era todo confiante em mim, cooperativo, fica no meu colo sem chorar, aceita que eu o conforte e segure sua mão enquanto o médico limpa o corte e injeta o anestésico. Já eu estou me sentindo morrer, fugindo todo o sangue e tremendo, e no momento exato em que o médico vai dar o primeiro dos seis pontos nossa mãe por sorte chega e eu desmaio, morta de vergonha. Na família de minha mãe as mulheres são todas poderosas, essas mulheres fortes com quem aprendi a viver, e que enfrentam qualquer parada com eficiência máxima e sem nenhuma falha. Menos eu, que sou lenta, esquisitona, meio incompreensível.
O frio da serra em Ubajara, o cheiro dos eucaliptos, os tão variados cantos dos tantos pássaros no Parque. Estou novamente na infância, cheiros e sons, e viajava por perto do Crato, algum sítio na serra ou por ali, e era frio, e as crianças vinham meio enrodilhadas umas nas outras em cima da caminhonete do tio, e nós em cima de uma lona, e o carro cheirando a ração de gado ou a algo que não sei o que era, mas era bom. E nós irmãos, juntos porque era frio, e Beto, meu irmão tão querido, que inventava estórias e descobria coisas para cantar falando da noite estrelada do Brasil (ele adorava, e eu também, uma que começava dizendo “quisera eu ser um grande poeta...”). E era mesmo uma ‘viagem’ deitar no desconforto e no frio e olhar as estrelas, chegaríamos ao décimo mundo se este houvesse. E não sei se vi jamais algo tão belo quanto aquele céu estrelado sob o qual flutuávamos no alto da serra, tão perto de nós, tão claro, tão perto das estrelas e de seus nomes, que meu pai nos contava nas noites suaves sem luz elétrica. As lembranças de Beto são iguais às minhas, em cheiro, cor, gênero, número e grau.
E nós irmãos que temos a felicidade - em meio a muitas outras felicidades, sem dúvida, são tantas boas lembranças, e eu não queria ter tido uma infância diferente - mas a de poder chorar pelas mesmas coisas, como diz meu irmão Luís Sávio.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns Ana Cecília! Gostei da sua crônica.

Abraços


Magali