Matozinho estava em festa. Envergara roupa de gala para a solenidade. Cordas de bandeirolas cortavam diagonalmente as ruas , amarradas em palmas de coqueiros, fincadas espaçadamente ao chão, bordeando a rua em toda sua extensão. . A banda cabaçal do maestro Bizarria , periodicamente, cruzava as calçadas, acompanhada de um bando de meninos, entoando cocos e marchas. Fogos ribombavam nos céus, como em noite de São João. A praça da matriz estava atapetada de barracas que vendiam passa-raivas, filhoses , roletes de cana, bolo de puba e outras iguarias em meio ao exército de garrafas de aguardente nas prateleiras. O esboço de um parque de diversões se estendia para as ruas laterais com canoas, carrossel, roda gigante, gangorra. Era o início das comemorações dos vinte e cinco anos da emancipação política da cidade. A programação preparada pela prefeitura era diversificada e caótica. O sacro e o profano faziam-se o verso e o anverso da mesma medalha. Missas, bingos, novenas, sambas, água benta, corrida de bicicleta, pau de sebo, discursos oficiais.
Fechando as festividades que se iniciaram na quinta feira, o domingo prometia : um jogo de futebol sensacional, uma espécie de FLa-FLu da região que envolvia as equipes do Milionários Golf Clube de Bertioga e o valoroso e querido Juventus Yacht Ckub de Matozinho. O clássico que ficou conhecido popularmente como MI-JU . Um embate histórico de antecedentes trágicos preocupantes. Nos últimos vinte anos, sempre que as duas equipes se encontravam, o saldo de feridos , mortos e desaparecidos terminaram por tornar o evento quase que inviável. Fato furado, tripa arrastando pelo chão, canela trincada, pescoção, unha arrancada, de um tudo já se tinha visto nos jogos entre os dois times. A coisa ficou tão feia que até se pensou em mudar a modalidade para vale-tudo, ao invés de futebol. Coisa de deixar um Hooligan indignado.
Pois bem, mas Matozinho é no Brasil e aqui o esporte preferido é o futebol. Até porque a infra-estrutura é simples: uma bola que pode ser confeccionada até com meia, umas traves improvisadas, um terreno baldio... A organização do evento cuidou para que os riscos pudessem ser minimizados. Mandou que se limpasse o campo cuidadosamente, roçando e arrancando as pedras mais pontudas; remodelou as traves com madeira nova e gastou mais de três quilos de cal para demarcar os pontos básicos: grande e pequena áreas, meio do campo, marcas dos pênaltis, perímetro total do campo. Cuidou ainda para que os atletas do Juventus tivessem a melhor alimentação, se concentrando na fazenda do Coronel Serapião Garrido, chefe político local. Simplesmente porque o time não poderia perder, já que se comemorava uma data festiva de Matozinho e um resultado desfavorável seria uma desonra irreparável para a história gloriosa da vila. A primeira grande enrascada veio rápido. Quem seria o juiz de uma partida tão disputada e de tantos e previsíveis riscos? Foram aventados vários nomes, Serapião, no entanto, deu a palavra final. O melhor seria convocar Dr. Irineu Carrera. Não era só por causa do sobrenome do homem , não! Dr. Irineu era o primeiro médico daquelas brenhas, atendia toda a região -- pobres, remediados e ricos -- , além de tudo todos o admiravam pela simplicidade. O esculápio contava incontáveis compadres e comadres nas cidades vizinhas. E mais, frisou Serapião, tem autoridade! Quem diabos vai querer brigar com ele ? E se adoecer no outro dia, meus amigos, de quem vai se valer?
Procuraram um Carrera ocupadíssimo nos seus afazeres e que relutou na missão. Não entendia muito de futebol, não tinha preparo físico para agüentar, apesar do sobrenome, correr campo acima, campo abaixo por noventa minutos. Serapião, no entanto, fincou pé, não era homem de levar um não para casa e o doutor não teve outro jeito a não ser enfronhar-se no campo minado. Quando a comissão deixou o consultório ele ainda pensou com sua bata: era mais fácil tentar resolver aquela pendenga lá na Faixa de Gaza!
O nome do juiz foi aceito com entusiasmo lado a lado. Sabia-se da sua autoridade indiscutível, além de tudo, teriam o médico ali perto, em pleno campo de batalha, pronto a encanar os braços quebrados, pontear as cabeças lascadas, atender os traumas múltiplos e esperados.
No domingo, o estádio improvisado fervilhava de gente. Todas as árvores ao redor curvavam-se ao peso dos torcedores, como se fora uma espécie de cadeiras numeradas. Convencionou-se que o time da casa jogaria de camisa e o Milionários, apesar do nome, nu de cintura para cima, para facilitar a identificação dos jogadores. Às três da tarde as equipes já estavam em campo, prontas a começar o embate. Um estrado mais alto foi posto de um dos lados para acomodar as autoridades locais : o delegado, o juiz, o padre; Sindé Bandeira, o prefeito e o velho Serapião Garrido. Após a execução do hino Nacional pela bandinha, Juvenal fogueteiro atiçou o estopim de umas dez dúzias de fogos. De repente, percebeu-se uma falha: Cadê o Dr. Irineu? Nada do juiz adentrar em campo. A organização , rápido, soltou meia cento de vaqueiros atrás do homem. Corre prá lá, pergunta de cá, terminaram encontrando o cabra, meio capotado, da farra do dia anterior. Estava com uma ressaca de matar, na casa de uma teúda e manteúda sua ali na rua do Caneco Amassado. Avisaram da urgência : só estava faltando ele, todas as autoridades esperavam impacientes. Carrera informou que estava impossibilitado de apitar por conta da ressaca, não tinha nem condições de se mexer na rede, como diabos é que ia correr noventa minutos no sol e ainda soprar apito? No campo, a galera já se agitava e as autoridades num calor digno de Terezina, já se coçavam. Convocaram, então, Serapião que teve que usar técnicas dignas da NASA. Botou um chapéu grande na cabeça do doutor , montou-o num burro e levou-o ao campo. Convocou um menino para puxar a alimária . Carrera, então , montado no burro, puxado pelo menino, de chapéu na cabeça e apito no beiço, passou a cumprir suas funções legais. O time atacava , o menino puxava o burro no sentido da trave adversária; a defesa desarmava, o menino dava meia volta e puxava o burro, com o juiz, no sentido contrário. Um sobe e desce infernal.
O pau comeu solto. No começo do segundo tempo, já haviam sido expulsos nove jogadores da Juventus e oito do Milionários, isso sem falar nos outros sete que saíram contundidos. O resultado, para desespero de Matozinho, continuava 0 X 0. Os matozenses ansiosos percebiam que aquele placar terminaria por anuviar a beleza da Festa de Bodas de Prata da cidade. O que se esperava terminar com Chave de Ouro, corria o risco de escorregar para flandres ou latão. De repente, a tragédia. O Center-ralf, “Zé Bigorna” da Juventus, derrubou, na pequena área, o Center-forward do Milionários: “Tiziu”. Faltavam exatamente dois minutos para o fim da partida. Irineu , o menino e o burro, estavam em cima do lance e o juiz não teve dúvida: apitou a penalidade máxima contra o time de Matozinho. O estádio manteve um silêncio sepulcral, parecia o Maracanã em 50, após o gol de Giglia.
Num átimo a população percebeu o tamanho do holocausto: a festa se acabava, a honra da cidade maculava-se definitivamente e, perdendo dentro do terreiro, serviriam de magofa para todo o sempre na região. Ninguém nunca imaginou que o MI-JU terminasse numa hecatombe daquelas.
No camarote, o Coronel Serapião demorou a entender o que se estava passando. Percebeu, no entanto, que existia alguma coisa errada. Não entendia nada de futebol, mas pela cara da torcida, pressentiu tudo. Chamou “Marreco”, seu assessor direto, e perguntou o que estava acontecendo. “Marreco” com voz entrecortada tentou explicar, inconformado:
--- Tamo lascado, Coronel, o juiz marcou um pênalti contra a gente e o jogo já tá quase acabando...
Garrido, pediu mais detalhes:
--- E que diabo é que é pênalti, homem de Deus ?
“Marreco” sussurrou aclarando a questão:
--- É uma falta contra nós. Eles vão botar a bola naquela marquinha ali perto do gol e vão chutar contra nossa trave !
O Coronel insistiu em mais detalhes:
--- E nós vamos botar quantos cabras na barreira pra ataiar a bola, seu “Marreco” ?
“Marreco” , então, o pôs a par do tamanho da bronca:
--- Num tem barreira não, Coronel, bate é direto... É difícil não ser gol... Vamos perder dos Milionários, será possível ? o Senhor vai deixar bater esse pênalti, coronel ?
Serapião respirou fundo, meio capiongo e falou:
--- Direto... pois a coisa é feia, seu “Marreco” ! Mas juiz é juiz, autoridade é autoridade, nós temos que respeitar, num tem jeito... Vai ter que bater o tal do pênalti sim !
“Marreco” aflito, perdeu as esperanças:
--- Tamo fudido então! Vamos perder! Mas como é que pode, coronel? Um desaforo desses dentro da casa da gente !
Neste momento, Garrido levantou-se de garrucha na mão e fechou questão:
--- Não! O juiz apitou vai ter que bater! Não desfaço autoridade de ninguém. Agora vai bater o pênalti do outro lado, contra o “Milionários”! Do lado de cá não tem fila da puta nesse mundo que bata pênalti, ou eu não me chamo Serapião Garrido! Joviu, seu Marreco ?
Um comentário:
Genial !
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