Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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domingo, 18 de setembro de 2011

A Carmem e a Acrofobia - José do Vale Pinheiro Feitosa

A acrofobia não é da Carmem, mas a narrativa é do mesmo personagem que me contou as duas histórias.

Mas pensando melhor o medo de ser Carmem é assim como um medo de altura. Saltar da pose de psicóloga até o abismo dos lenços enfeitiçados no pescoço do moreno sedutor. Com uma dança a oferecer pelas costas o fascínio das montanhas duplas do corpo.

Bem que merece. Uma noite no Teatro Municipal do Rio para ouvir Nelson Freire no virtuosismo de uma audição de piano e orquestra. Um sobrinho para comprar os ingressos. Qual a condição? Eu vou comprar no lugar que posso pagar. Está bem. Ficamos todos juntos!

Algumas garrafas de cachaça transportadas da cidade até o alojamento em chalés num meio semi-rural. Um baile à fantasia e todos juntos. Alto nível. Analisando o contexto do imaginário humano em sociedade. O baile fazia parte do relaxamento após tensas rodas de autoconhecimento.

Ninguém vai ao Teatro Municipal sem uma roupa de gala. Além de tudo era o aniversário dela. E a comemoração acontecia nos salões art-nouveau do teatro com seus candelabros e a elegância dos salões, assentos das poltronas, e belíssimo e iluminado palco.

O fogo da aguardente com a doçura do mel de abelhas surripiado da despensa dos padres. O alojamento era da Diocese. Não existe um drama espanhol que resista a tal cruzamento. A Carmem não estava ali para seduzir apenas um. A todos: fosse em grupo ou com alguma individualidade seduzida.

O lugar a que pode pagar não daria outro. Cadeiras marcadas nas galerias do municipal. Naquelas poltronas laterais quase despencando no abismo da platéia. Ali naquela fronteira em que o corpo treme o drama de saber-se se irá pular voluntariamente ou congelar-se de pavor.

As noites de baile a fantasia abrem, mas o recato feminino procurou o leito para apascentar as dúvidas das cenas vividas. Mas enquanto as companheiras de quarto dormiam, a madeira da cama do chalé ao lado rangia como uma velha caravela no centro de uma tempestade.

Eu sou psicóloga. Eu não vou saltar. Eu sou resolvida, não tenho medo de altura. Mas as leis da gravidade são outra matéria, pertencem à física embora a psicologia entenda as leis da atração. E foi isso que o diabinho dizia: pula. Que psicóloga que nada, abraça-te ao vazio pelo qual tua vida escapa.

Entre o lenho e madeiras rangidas surgiram as conseqüências dos ruídos audíveis. São ais, expressões que pedem mais, um gemido enganador, pois não se fala da dor. E no êxtase do momento naquele chalé, não teve quem compreendesse por que Deus tem que tão ardorosamente ser chamado. Carmem em ação.

Menino pega meu braço e me tira deste abismo. Calma! Calma que nada, eu vou pular, me tire daqui. As mãos geladas, prenúncio da morte iminente, agarraram os braços do sobrinho. E lá vai com ele até os batentes das galerias, ali mesmo de onde a acrofobia permitiu-lhe as notas musicais de Nelson Freire.

No dia seguinte no café da manhã os incômodos das ouças agredidas por tantos rogos a Deus. A palavra mais comentada foi que: mas que coisa mais inconveniente. Um dos seduzidos, o moreno em quem todos apostavam, não levou o troféu da noite e logo tratou de desmentir qualquer hipótese de ménage à trois.

Nelson Freire assistido dos batentes das galerias por uma simples fobia de altura e todas as demais pessoas incomodadas por igual medo desta ligação entre a carne e Deus.

Na leva do vento

- Claude Bloc - 
 

É domingo.
(re)vejo-me em casa
cansada, silente...
E bem sei que aos domingos a vida gira,
e tudo volta ao princípio.
E sei também que este é mais um domingo
em que meu olhar corre o asfalto sem pauta...
Neste domingo
a música calou-se por entre as pedras do calçamento
e levou consigo a festa das flores,
a imagem dos dias em que sorri
na leva no vento...
Lá onde deixei ficar
meu olhar perdido num novo aceno.
As ruas dormem neste domingo
Dormem também as horas,
os sonhos
Dormem as cores do domingo.

Claude Bloc

Nascem flores no pântano – por Gaudêncio Torquato (*)



(Transcrito de “O Estado de S.Paulo”)

A flor de lótus nasce no pântano. Exibe beleza e força. Das águas lodosas desabrocham flores brancas, imaculadas, uma perfeição da natureza. A imagem da flor foi usada, faz bom tempo, neste espaço para expressar a crença de que no meio do caos há uma réstia de esperança. A frase era: "A política chegou ao fundo do poço em matéria de moral. Mas não morreu a esperança de nascer uma flor no pântano". Saulo Ramos, jurista e sábio, e também um incréu, pinçou a alegoria em seu livro Código da Vida para atribuí-la aos "puros, os poetas, os idealistas", não sem fazer votos para que "eles tenham razão" na pregação.

Pois bem, a política continua cercada de lama por todos os lados, mas são inegáveis as flores que nascem aqui e ali, sob os cuidados atentos de uma gente de fé que junta forças e motivação para deixar o conforto de sua casa e organizar uma “Marcha Contra a Corrupção”, dando-se as mãos, erguendo faixas, ecoando palavras de ordem, clamando por decência. As manifestações começaram no dia 7 de setembro, em Brasília e em outras regiões. Amanhã, dia 19, será a vez do Rio de Janeiro fazer a sua “Marcha Contra a Currupção”. Elas mostram que o Brasil está longe de ser um gigante adormecido em berço esplêndido. Fazia tempo que não se distinguiam, em rostos juvenis, as cores verde e amarela, traços da estética cívica que o Brasil tem gravados desde os tumultuados idos do impeachment de Collor.

Há uma chama iluminando parcela considerável da consciência social. Ou, para usar outra imagem, um rastilho de pólvora se infiltra em numerosos espaços, pronto para receber o fósforo da explosão. A escalada ética que se descortina neste instante é emoldurada, de um lado, pelo desenho da assepsia que a presidente Dilma Rousseff realiza em estruturas críticas da administração federal e, de outro, por atos corporativos como o da Câmara ao inocentar a deputada federal Jaqueline Roriz, flagrada em indecoroso gesto de receber dinheiro suspeito.

A mobilização social pela moralização de costumes e práticas na política ganha volume ao impulso das redes sociais, sendo este, aliás, um fenômeno que se amolda ao modo de pensar e agir das correntes da sociedade. O fato é que os milhões de internautas que usam cotidianamente as redes tecnológicas da comunicação - beirando 50 milhões de pessoas - configuram um poderoso núcleo irradiador de informações e visões e, como tal, funcionarão como pulmões a oxigenar o coração da opinião pública. Não há mais como deixá-los à margem do processo comunicacional brasileiro. Doravante deverão ser avaliados sob o prisma da articulação e da mobilização, sendo demonstração cabal de seu poderio a convocação da Marcha Contra a Corrupção, sob a égide exclusiva das teias sociais.

O fato auspicioso é que a consciência cívica dá sinais de alerta nestes tempos de intensa mudança de quadros, troca de ministros e de mutirões de mobilização, destinados a permanecer nas redes sociais. No dia 12 de outubro, a convocação pela via eletrônica sinalizará uma nova marcha, desta feita pela educação e contra a corrupção.

Não há por que deixar de crer - e ver - que resplandecem flores no pântano.

(*) Gaudêncio Torquato é jornalista. Professor titular da USP e consultor político e de comunicação