(Transcrito de “O Estado de S.Paulo”)
A flor de lótus nasce no pântano. Exibe beleza e força. Das águas lodosas desabrocham flores brancas, imaculadas, uma perfeição da natureza. A imagem da flor foi usada, faz bom tempo, neste espaço para expressar a crença de que no meio do caos há uma réstia de esperança. A frase era: "A política chegou ao fundo do poço em matéria de moral. Mas não morreu a esperança de nascer uma flor no pântano". Saulo Ramos, jurista e sábio, e também um incréu, pinçou a alegoria em seu livro Código da Vida para atribuí-la aos "puros, os poetas, os idealistas", não sem fazer votos para que "eles tenham razão" na pregação.
Pois bem, a política continua cercada de lama por todos os lados, mas são inegáveis as flores que nascem aqui e ali, sob os cuidados atentos de uma gente de fé que junta forças e motivação para deixar o conforto de sua casa e organizar uma “Marcha Contra a Corrupção”, dando-se as mãos, erguendo faixas, ecoando palavras de ordem, clamando por decência. As manifestações começaram no dia 7 de setembro, em Brasília e em outras regiões. Amanhã, dia 19, será a vez do Rio de Janeiro fazer a sua “Marcha Contra a Currupção”. Elas mostram que o Brasil está longe de ser um gigante adormecido em berço esplêndido. Fazia tempo que não se distinguiam, em rostos juvenis, as cores verde e amarela, traços da estética cívica que o Brasil tem gravados desde os tumultuados idos do impeachment de Collor.
Há uma chama iluminando parcela considerável da consciência social. Ou, para usar outra imagem, um rastilho de pólvora se infiltra em numerosos espaços, pronto para receber o fósforo da explosão. A escalada ética que se descortina neste instante é emoldurada, de um lado, pelo desenho da assepsia que a presidente Dilma Rousseff realiza em estruturas críticas da administração federal e, de outro, por atos corporativos como o da Câmara ao inocentar a deputada federal Jaqueline Roriz, flagrada em indecoroso gesto de receber dinheiro suspeito.
A mobilização social pela moralização de costumes e práticas na política ganha volume ao impulso das redes sociais, sendo este, aliás, um fenômeno que se amolda ao modo de pensar e agir das correntes da sociedade. O fato é que os milhões de internautas que usam cotidianamente as redes tecnológicas da comunicação - beirando 50 milhões de pessoas - configuram um poderoso núcleo irradiador de informações e visões e, como tal, funcionarão como pulmões a oxigenar o coração da opinião pública. Não há mais como deixá-los à margem do processo comunicacional brasileiro. Doravante deverão ser avaliados sob o prisma da articulação e da mobilização, sendo demonstração cabal de seu poderio a convocação da Marcha Contra a Corrupção, sob a égide exclusiva das teias sociais.
O fato auspicioso é que a consciência cívica dá sinais de alerta nestes tempos de intensa mudança de quadros, troca de ministros e de mutirões de mobilização, destinados a permanecer nas redes sociais. No dia 12 de outubro, a convocação pela via eletrônica sinalizará uma nova marcha, desta feita pela educação e contra a corrupção.
Não há por que deixar de crer - e ver - que resplandecem flores no pântano.
(*) Gaudêncio Torquato é jornalista. Professor titular da USP e consultor político e de comunicação
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