Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

ENVIE SUA FOTO E COLABORE COM O CARIRICATURAS



... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


FOTO DA SEMANA - CARIRICATURAS

Para participar, envie suas fotos para o e-mail:. e.
.....................
claude_bloc@hotmail.com

domingo, 29 de agosto de 2010

A casa da filha - por Rejane Gonçalves


Um, mais um, depois outro, se não resolvesse, um outro; devia ser mesmo da inteira responsabilidade do vento e do frio a natureza do pedido. Cobririam, pois, os ombros da mãe e a levariam dali, duplicada pelo suéter, o xale, o casaco da amiga, o paletó do filho mais novo, por último os braços do filho mais velho.
Presa na carapaça, a tartaruga conseguiu erguer a cabeça, virá-la para trás e apertando os olhos procurou um melhor enquadramento da imagem, o lugar mostrou-se nítido, fixou-se como se não quisesse desaparecer nunca, depois o carro foi se afastando e o lugar não quis vir, distanciou-se, corria na direção oposta, numa velocidade bem maior, deveria ter desaparecido ao mesmo tempo em que o carro, desapareceu primeiro, sumiu numa elevação súbita da estrada. Presa nos agasalhos, a mãe desvirou a cabeça, os olhos miúdos da velha tartaruga olharam para frente.
Queria tanto ficar, só por essa noite, se eles permitissem. Lucinda também haveria de querer, quando muito em troca dos favores, a melhor amiga, bem dizer uma irmã, lhe devia favores, favores que dinheiro nenhum pagaria. Lucinda haveria de ficar agradecida, de que outra forma teria condição de pagar a dívida àquela mulher sepultada pelos casacos? Queria tanto não ter ido embora, pedira e fizeram de tudo para não ouvir; pedia insistentemente e ouviu que não seria possível, pediu que deixassem, de qualquer jeito, por mais um tempo, deixassem, era só por aquela noite, se temiam que ela ficasse sozinha, bastava chamar Lucinda que é da inteira confiança de todos, já conversara com ela, não dissera sim, nem se negara, bastaria insistir um pouco e a grande amiga que lhe devia o teto, a acolhida, a sobrevivência e, mais para diante, o pagamento de uma prestação atrasada da escola do neto, a roupa emprestada para a formatura da filha, até mesmo o dinheiro para algumas feiras – haveria de concordar. Nunca foi de fazer cobranças a ninguém, de nada; era de falar mal, zangar-se, sempre fora de falar muito mal dessas pessoas que prestavam favores e na hora da necessidade cobravam, dizia que elas não mereciam perdão.
Lucinda chegara no meio da noite e batera à porta da casa, de sua casa, não desta, daquela que ficava na rua principal, tinha escadaria, azulejos portugueses, quatro janelões que passavam o dia inteiro abertos, as cortinas levantando voo, telhado que se projetava para a calçada, amenizando a chuva e o sol. Todos muito pequenos, não devem mesmo ter guardado o acontecido, ela sim, vez por outra, contava a história da amiga, não para se vangloriar, para que servisse de exemplo; será que eles se esqueceram mesmo, não, tinha certeza, todos ainda jovens, é assim que se fala, a maioria na meia-idade, é certo, hoje em dia também se dizem jovens os de meia-idade, fulaninho morreu tão jovem e quando ela perguntava quantos anos tinha o tal fulaninho, cinquenta, até sessenta já ouvira; então, todos continuam jovens, não seria caso de esquecimento, a memória não está falhando, a dela estava e ela não se esquecia. Há menos de uma semana repetira para uma das netas que reclamava da vida, que nenhuma pessoa da família, nenhum deles, sabia direito o que era dificuldade, Lucinda, sim, esta sabia de sobra, quer maior sofrimento do que bater na porta dos outros de madrugada, com cinco crianças e outra na barriga, fugindo das gentes que dera cabo de seu marido e estava atrás dela, única testemunha, sabe o que é deixar casa, anos de trabalho e economias, fugir só com a roupa do corpo e pedir abrigo na casa da amiga de infância que tivera mais sorte que ela, casara com um homem rico, sim, porque na época teu avô tinha muito dinheiro, depois é que a riqueza foi minguando e quase ficamos tão pobres quanto Lucinda, mas os filhos estudaram, os meus e os dela, a riqueza não voltou, a pobreza também não, vivemos bem, nós, um tanto mais que ela, de que reclamava a neta? Tinha certeza de que Lucinda não se negaria, nem pôde falar com a amiga mais uma vez, não lhe deram tempo.
Teve o cuidado de seguir todos os conselhos que escutava sobre como encorpar uma criança, engordar a cria. Fez com que a filha tomasse o leite mais forte, misturado às massas mais nutritivas, engolisse os chás e provasse o amargor de todas as ervas consideradas milagreiras, só passou a responsabilidade para Deus depois que uma dessas receitas, ouvidas no converseiro das comadres, engordou de tal maneira o rosto de Maria das Graças que ela precisou ser internada às pressas, escapando por pouco de uma asfixia. Era o jeito aceitar a magrém da menina, a única solução, acostumar-se com o fio sem prumo que se metia em todos os esconderijos nas brincadeiras de esconde-esconde; saber que no lugar onde nenhum filho, de quem quer que fosse, caberia, ela, Alinha, como passou a ser chamada, caberia sem nenhum esforço. Talvez a folga fosse mesmo uma redoma a proteger Maria das Graças dos tombos, encontrões, ferimentos; tudo e todos existiam a uma distância respeitosa de sua pequena, feito se tivessem medo de quebrá-la, chegou a pensar nisso, depois viu que não, era a folga, o espaço não preenchido continuava ali, esperando o tempo em que o corpo de Alinha se decidisse.
Soube que viriam os amigos da filha, iam chegar, uma parte já havia chegado, outra estava a caminho, logo todos estariam presentes. Desejou que a outra parte se demorasse, ou se perdesse; enquanto esperam, mais tempo ficaria do lado da filha, cuidando para que não fosse violado o espaço vazio, a folga haveria de ser respeitada. É certo que a caixa de madeira, onde colocaram Maria das Graças, ajustava-se perfeitamente ao corpo da moça, um vestido de corte estreito a contorná-la da cabeça aos pés. Alinha sempre gostara de roupas largas, era um desrespeito.
A boneca com trajes típicos da Holanda, touca de organdi bem armada, tamancos pontudos e coloridos, ao recebê-la, a filha rasgou o papel de presente, colocou a caixa na vertical, depois a emborcou, virava de um lado para o outro, deixando até que ficasse de ponta-cabeça e a boneca de louça mal se mexia, os olhos azuis abriam e fechavam, dependendo da posição da caixa, as tranças louras dobravam-se em arcos sobre a cabeça, ou estiravam-se, ou vagavam para lá e para cá, um papel transparente, envolto na caixa vazada, exibia a boneca ao mundo e alguma presilha a mantinha fixa ao interior da caixa. Pensou que se fizesse o mesmo com Alinha, se ela ficaria presa, imantada ao corpo da caixa, ou cairia no chão, cheia de flores, emaranhada na transparência do tule branco que permitia a todo mundo olhar para Maria das Graças, quantas vezes quisesse; não, a boneca de louça viera numa caixa de papelão dourado, com tampa, fora um presente dado a ela, à mãe, não à filha, foi só retirar a tampa e pegar a boneca nos braços e depois fazê-la adormecer e guardar. Naquela noite, em cima do guarda-roupa onde poderia olhar para a caixa fechada e ver que ela não se movia, igual ainda estivesse na prateleira da loja, fez desse jeito na primeira noite porque tinha certeza de que a boneca precisava que ela a olhasse, vigiasse, estivesse acordada, velando o sono da criatura de louça; não era bom dormir sozinha na casa nova logo numa primeira noite, seria mais confortável para a boneca que dormisse assim, dentro da caixa, mas sabendo que a mãe, do lado de fora, não se descuidaria, pelo menos enquanto fosse nova a casa.
Era de madeira a caixa onde fora guardada a filha. Feita do mesmo material, a tampa permanecia à espera, escorada na parede, pacientemente, perpétua, um objeto deixado por engano no vazio daquelas paredes brancas, mas que de algum modo adequara-se ao ambiente, ficara à vontade, natural, integrado, sem esforço aparente, à decoração. Talvez já estivesse ali há muito tempo, ela e seu Cristo de bronze – crucificado na parte de cima, disposto de maneira a se estender sobre o peito de Maria das Graças – antes mesmo que o branco do quarto existisse. Não uma, nem duas vezes, várias, olhou para a tampa de madeira clara, quase bege e viu a filha como que reclinada, os pés bem apoiados no chão, um pouco afastados da parede, as pernas escondidas pela saia longa, uma mão conduzindo o cigarro à boca, a outra, nervosa, varrendo do corpo as últimas pétalas, livrando-se de vez do tule; não tinha mesmo necessidade, nem gostaria da transparência daquele pano, do acanhamento das florzinhas mal bordadas a enfear o contorno do véu; gostava dos véus baços, a filha, das volutas de fumaça que a encobriam. Esquecera-se, esquecera-se completamente, se a embalagem era tão parecida com a da pequena holandesa, podia retirar da caixa e voltar a colocar Maria das Graças dentro da caixa, sem que ninguém percebesse, igual fazia com a boneca de tranças louras.
O filho veio lhe dizer que teriam de fechar a caixa, a administração do lugar tinha limites, estava escurecendo, não fora possível convencê-los a esperar um pouco mais pelos atrasados, fizera de tudo; ela mesma não via que já escureceu, é de noite? Pegou as mãos dele, embrulhou-as nas suas, beijou-as várias vezes, misturadas às contas do terço que enroscara nos dedos e intercedeu pelos amigos de Alinha, disse que a filha não haveria de gostar que a família não tivesse esperado, e como iriam escapar da raiva daquela amiga, bem dizer uma irmã, a mesma que vez por outra falava umas verdades para Maria das Graças? Essa amiga estava entre os atrasados, além disso, a casa onde a filha passaria a morar, onde dormiria pelo resto da vida, encontrava-se tão perto dali, uns poucos passos e todos já estariam lá, que não se apressasse, por que tanta pressa se era noite de lua? Soltou as mãos do filho, deu-lhe as costas, envergonhada dos próprios pensamentos. Desejou que aqueles amigos não chegassem nunca, se perdessem pelas estradas, errassem a entrada da cidade, se extraviassem de vez por suas ruas e becos. A tampa continuaria encostada na parede e a boneca de rosto fino, pele esverdeada, nariz afilado, cabelos curtos e pretos, olhos cerrados, lábios entreabertos e roxos, continuaria eternamente à mostra.
Dizem que é para ela descansar. Não estava cansada. Dormir. Não tinha sono. Apenas uma grande preocupação. O que seria de Alinha, morando numa casa tão pequena, ela, a quem o espaço sempre reverenciara. Precisava, pelo menos até que a filha se acostumasse, estar plantada na frente daquela casa plana, rente ao chão, cuja porta não era uma porta; aqueles blocos de cimento colados uns nos outros e recobertos por uma camada de pequenas pedras brancas, desoladas, avessas a qualquer esperança de cor, nem de longe se assemelhavam à tampa de papelão dourado. Correra a vista para um lado e outro, paisagem árida, campo descolorido, casas todas iguais. Vê um sorriso chegando, expulsa-o como se esconjurasse uma assombração, dali em diante essas visitas seriam inoportunas, meu Deus, ela indigna-se, pede para que Ele lhe afaste dos pensamentos essa lembrança atrevida, não queria ouvir a voz do filho mais novo de Lucinda, o Senhor haveria de saber de quem se tratava, daquele, do que recebera o nome de José Maria, justo em homenagem a ela mesma e ao marido, pela acolhida na hora da precisão. O rapaz falava de um jeito tão engraçado da vila popular, do conjunto habitacional onde morava, dizia que se o morador da esquina vendesse a carcaça do carro amarelo que desde sempre vivia encostada no muro baixo, na parte de dentro, quase arranhando a frente da casa, ele, Zé Maria, quando saísse para comprar o pão era bem capaz de se perder, nunca mais que iria achar a entrada da rua de sua própria casa. Ela não corre esse risco, a casa da filha tem uma placa com nome e sobrenome, duas datas, com dia, mês e ano; a rua, faltava a rua, talvez devesse ter marcado a rua. As casas existem nas ruas, o afilhado tinha razão.
De madrugada, bateria à porta de Lucinda, diria que era somente pelo resto daquela noite, enquanto Alinha acostumasse os olhos ao escuro e o corpo ao vestido apertado, haveria de concordar que Maria das Graças acostumara-se por demais com a folga, o espaço livre e respeitoso, ao redor. A mãe de Alinha cobraria o favor, não era de seu feitio, mas não via outro jeito, Lucinda era mulher de bom coração, haveria de entender e até ficar feliz em pagar. Esquecera-se, novamente se esquecera, Lucinda é de gestos arrebatados, por natureza barulhenta, Maria das Graças dorme a sono solto pela primeira vez em todos esses dias, melhor deixar para amanhã, melhor recolher-se à carapaça e respeitar a quietude da filha, deixar que durma em paz.
------- x -------

Nenhum comentário: