Os passos que começaram a ser dados para a abertura do processo de beatificação da princesa Isabel na Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro estão perfeitamente sincronizados com as reais necessidades do nosso país, governado hoje pela segunda mulher brasileira.
Comecei a escrever esse artigo no dia 14 de novembro de 2011, sabendo que há 90 anos falecia, em Paris, a primeira mulher que governou o Brasil, a princesa Isabel Cristina Leopoldina Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança.
Era também uma segunda-feira, e no Castelo d’Eu, na Província da Normandia, em consequência de uma insuficiência cardíaca agravada por congestão pulmonar, a três vezes regente do Império brasileiro pronunciava o seu definitivo “sim” a Deus, aceitando a morte bem longe de sua amada pátria, o Brasil.
No seu testamento feito em Paris, no dia 10 de janeiro de 1920, encontram-se os seus três grandes amores. Assim se lê nesse documento revelador: “Quero morrer na religião Católica Apostólica Romana, no amor de Deus e no dos meus e de minha pátria”.
Inseparáveis no coração de mulher, de mãe e de regente, esses amores, vividos com fidelidade e heroísmo, constituíram o núcleo mais profundo de seu caráter feminino, sempre presente na presença régia dessa mulher – esposa, mãe, filha, irmã, cidadã – e, sobretudo, na sua função de uma governante incansável na consecução de uma causa que se arrastava lentamente no Império desde 1810: a libertação dos escravos pela via institucional, sem derramamento de sangue.
Conhecendo com mais detalhes a vida dessa regente do Império brasileiro e conversando com várias pessoas sobre a sua possível beatificação e canonização num futuro próximo, fico admirado com suas qualidades humanas e sua atuação política sempre inspirada pelos princípios do catolicismo, e, paralelamente, chama-me atenção o desconhecimento que há no nosso meio cultural e universitário sobre a personalidade dessa princesa brasileira.
Sabemos que sua atuação política, inspirada pelos ensinamentos evangélicos, não foi bem acolhida na corte e na sociedade da sua época, quando a economia brasileira dependia desse sistema escravagista tão indigno do ser humano. Sabemos que sua vida católica profunda e ao mesmo tempo muito prática incomodava, a tal ponto que comentários pejorativos – tal como acontece ainda hoje quando se é autenticamente católico – sobre sua “beatice” eram muito frequentes entre os políticos da sua época. Sabemos que as suas ações beneméritas e de caridade cristã não só a levaram a abraçar essa causa abolicionista, mas também a varrer a Capela Imperial de Glória (a Igreja do Outeiro) com as mulheres escravas e a viver com constância duas das inúmeras preocupações cristãs: rezar pelo Brasil e pela conversão dos ateus.
O que sobressai nesse saber histórico e nos permite falar e agir no sentido de abrir um processo canônico de beatificação dessa primeira mulher governante do Brasil é a sua fé firme, a sua fervorosa caridade e a sua inabalável esperança cristã, que a conduziram por um caminho muito característico das pessoas que respondem à chamada, presente no sacramento do Batismo, a santidade. O caminho da defesa da dignidade e dos autênticos direitos humanos, tão necessária para a construção de um país onde a justiça social e a paz entre os homens fortalecem as relações entre todas as classes sociais, não é apenas uma atitude política, mas é uma ação própria dos santos de todos os tempos e, principalmente, da nossa época moderna e pós-moderna.
A princesa Isabel, como católica, esposa, mãe e governante do Brasil, sabia muito bem que a fé, a esperança e a caridade cristãs não conduzem a um refúgio no interior das consciências ou não são para serem vividas somente entre as quatro paredes de uma igreja, mas comprometem os católicos na busca incansável de soluções para os grandes problemas sociais da época da história na qual vivem.
Foi por isso que a princesa Isabel mereceu a mais suma distinção da Igreja Católica, a Rosa de Ouro, conferida pelo Papa Leão XIII, em 28 de setembro de 1888, um prêmio que é análogo ao atual Prêmio Nobel da Paz, e até hoje foi a única personalidade brasileira a receber essa comenda, guardada no Museu de Arte Sacra do Rio de Janeiro.
Os passos que começaram a ser dados para a abertura do processo de beatificação da princesa Isabel na Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro estão perfeitamente sincronizados com as reais necessidades do nosso país, governado hoje pela segunda mulher brasileira. Ontem como hoje a promoção da vida dos mais marginalizados no Brasil, a defesa do “ventre livre”, onde as crianças podem desenvolver-se sem a entrada de máquinas aspiradoras e assassinas das suas vidas, a atenção social e econômica mais urgente com os “escravos do álcool, do crack, dos antivalores” que acabam com boa parte da juventude brasileira, a tolerância e o respeito pela pluralidade religiosa e a abertura ao diálogo sincero entre as diversas camadas sociais são prioridades que devem ser atendidas num esforço comum entre católicos, evangélicos, muçulmanos, judeus, seguidores das religiões africanas, enfim, por todos que têm amo r pelos seus entes queridos e pelo Brasil à semelhança da princesa Isabel.
Para que no Brasil se respire a verdadeira liberdade e haja realmente unidades pacificadoras no meio das cidades espalhadas, e não em comunidades cariocas dominadas pelo tráfico de drogas, urge ter homens e mulheres, como a princesa Isabel, o frei Galvão, a irmã Dulce, etc., que com suas vidas exemplares na fé, na esperança e na caridade, sejam testemunhas vivas da santidade, que não passou de moda, pois os santos continuam sendo os grandes conquistadores e construtores do mundo onde a humanidade pode habitar.
Vale a pena considerar com pausa e reflexão essa chamada feita no início do Terceiro Milênio pelo saudoso Papa João Paulo II para a hora em que estamos vivendo na Igreja.
“É hora de propor de novo a todos, com convicção, essa medida alta da vida cristã ordinária: toda a vida da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve apontar nessa direção (…). Os caminhos da santidade são variados e apropriados à vocação de cada um” (cf. Carta Apostólica no início do Novo Milênio, beato João Paulo II, n. 31, 6.1.2001).
(*) Dom Antônio Augusto Dias Duarte
Bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro – RJ
Um comentário:
Este artigo de Dom Antônio Augusto foi publicado no semanário da arquidiocese carioca, TESTEMUNHO DE FÉ, na edição 719 (20.11.2011).
Dom Antônio Augusto Dias Duarte, nasceu em Santo André (SP) em 7 de novembro de 1948. É médico e bispo-auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro.
De 1970 a 1975 cursou a faculdade de Medicina na Universidade de São Paulo, especializando em Pediatria. Sua ordenação Sacerdotal ocorreu em 15 de agosto de 1978, em Barbastro, Espanha. Posteriormente fez o doutorado em Teologia Moral na Universidade de Navarra, na Espanha.
Na Arquidiocese do Rio de Janeiro, Dom Antônio é responsável pelas Pastorais Familiar, da Saúde e da Juventude; pelos movimentos leigos e atua como animador do Vicariato Episcopal Sul. Responsável pela Associação dos Médicos Católicos, pela União dos Juristas Católicos e pela Pastoral Universitária do Regional Leste I. De 2007 a 2011 foi membro da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família da CNBB e responsável pelo setor Vida do Departamento de Família e Vida do CELAM.
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