Tenham medo dos contos de Luiz Arraes
Everardo Norões
Luiz Arraes é um escritor pernambucano que conseguiu se desvencilhar do demônio do regionalismo. Sem despedir-se de nosso universo diário – pois é dele que desenraíza a matéria-prima de seus contos –, sua narrativa pode mover-se em qualquer espaço onde houver uma fresta para a travessia da luz. Luz que tem o vigor e a precisão de um laser, pois corta como bisturi e escolhe o lugar certo da ferida.
Ele também se livrou da influência de mestres, cuja obra, a cada passo e a cada estação, costuma arrebanhar discípulos entre os escritores mais jovens. Sua admiração por Augusto Monterosso, o contista guatemalteco, nada tem a ver com o tamanho de seus contos, nem com a estratégia de sua narrativa. Nos contos que escreve, Luiz Arraes adota dois elementos que o circunscrevem no rol dos contistas mais modernos: a brevidade de uma leitura que não expurga a forma e “aquela intensidade como acontecimento puro”, de que trata Julio Cortázar no ensaio sobre Poe. Uma intensidade em que cada palavra deve concorrer, segundo o escritor argentino, para fazer do conto “uma verdadeira máquina literária de criar interesse”.
Ao desviar-se daquelas limitações – a infecção regionalista e o estigma de algum antecessor –, Luiz Arraes não receou desbrenhar o caminho solitário da criação e soube permanecer arredio a essa espécie de mímesis tão pouco aristotélica.
Qual a chave do enigma? A decifração pode estar contida numa das frases do conto O tudo e o nada, publicado no livro O remetente (7Letras: Rio de Janeiro, 2003): “Eu, vocês notaram, não tenho medo das grandes palavras nem de lugar-comum”.
Pouco importa se o narrador é, ou não, o alter ego do autor. A linguagem objetiva, quase coloquial, não carece de floreios. As grandes palavras residem, primeiro, nas epígrafes, recorrentes em muitos de seus contos e saídas da pena do filósofo alemão Friedrich Nietzsche ou do escritor anglo-indiano Salman Rushdie, de um dito popular ou do filósofo brasileiro Gustavo Corção. Pouco importa. A grande palavra que serve de mote conduz à tessitura da fábula, à ilustração do preceito. No final de um texto em que o coloquial predomina, o leitor é duplamente surpreendido: tanto pela chave que fecha as portas da narrativa como pelo arremate sentencioso, que se nos afigura como uma frase de Montaigne ou o fecho de uma fábula. Porém, fábula que rompe com todos os cânones. Primeiro, a concepção aristotélica de nela só admitir os animais. Em seguida, a de La Fontaine, que as escrevia para “agradar e instruir”. Talvez seja melhor falar de apólogo, que pode ser definido como uma narrativa curta susceptível de ilustrar uma verdade moral.
Ocorre que nos contos de Luiz Arraes há uma subversão que nos dificulta defini-los de acordo com os preceitos de praxe. A “moral” ou a “verdade” que deles irrompe transtorna e incomoda. Revela a feiúra de nosso cotidiano. A feiúra se inscreve na soleira do que se costuma chamar a “modernidade”. “Pois o importante para a arte não é mais mostrar o que é apenas ‘belo’, escreveu Baudelaire – o poeta francês reconhecido como fundador da “modernidade” –, que não conseguia conceber um tipo de Beleza em que não existisse Infelicidade. E no conhecido ensaio A desumanização da arte, de 1924, Ortega y Gasset já observava, com propriedade, que a arte “obriga o bom burguês a sentir-se tal como ele é: bom burguês, ente incapaz de sacramentos artísticos, cego e surdo a toda beleza pura”.
O conto O remetente, que empresta o título ao livro, pode ser lido como uma alegoria sobre a própria condição do autor: o personagem envia cartas anônimas às pessoas de seu conhecimento, com o objetivo de criar situações incômodas, transtornar aqueles para quem a vida é “mais vazio do que plenitude”. Até que desiste do intento e resolve escrever para si mesmo, ao reconhecer que é melhor recebê-las do que se dar ao trabalho de enviá-las.
Os contos de Luiz Arraes são como essas cartas, incômodas, que gritam dentro de nós. Incômodo e emoção, como no conto O sonho da criança pobre: aquela que sonha com a mãe sem roxo na cara, com o pai sem bafo de álcool, com alguém capaz de lhe passar a mão na cabeça. Aquela que, finalmente, apenas aprendeu a sonhar cheirando cola e, desde então, “sonha acordada e, quando dorme, tem pesadelos”.
Tenham medo das narrativas de Luiz Arraes.
Não são amenas como as narrativas edulcoradas, que tratam de algum passado épico, ou de amores bem-sucedidos.
Tenham medo dos contos de Luiz Arraes.
Sobretudo se quiserem esquecer, no aconchego de vossos quartos congelados de um último andar, que existe uma outra cidade: a que sonha em assaltar nossos sonhos.
Como os colonizados de Frantz Fanon.
Everardo Norões
Luiz Arraes é um escritor pernambucano que conseguiu se desvencilhar do demônio do regionalismo. Sem despedir-se de nosso universo diário – pois é dele que desenraíza a matéria-prima de seus contos –, sua narrativa pode mover-se em qualquer espaço onde houver uma fresta para a travessia da luz. Luz que tem o vigor e a precisão de um laser, pois corta como bisturi e escolhe o lugar certo da ferida.
Ele também se livrou da influência de mestres, cuja obra, a cada passo e a cada estação, costuma arrebanhar discípulos entre os escritores mais jovens. Sua admiração por Augusto Monterosso, o contista guatemalteco, nada tem a ver com o tamanho de seus contos, nem com a estratégia de sua narrativa. Nos contos que escreve, Luiz Arraes adota dois elementos que o circunscrevem no rol dos contistas mais modernos: a brevidade de uma leitura que não expurga a forma e “aquela intensidade como acontecimento puro”, de que trata Julio Cortázar no ensaio sobre Poe. Uma intensidade em que cada palavra deve concorrer, segundo o escritor argentino, para fazer do conto “uma verdadeira máquina literária de criar interesse”.
Ao desviar-se daquelas limitações – a infecção regionalista e o estigma de algum antecessor –, Luiz Arraes não receou desbrenhar o caminho solitário da criação e soube permanecer arredio a essa espécie de mímesis tão pouco aristotélica.
Qual a chave do enigma? A decifração pode estar contida numa das frases do conto O tudo e o nada, publicado no livro O remetente (7Letras: Rio de Janeiro, 2003): “Eu, vocês notaram, não tenho medo das grandes palavras nem de lugar-comum”.
Pouco importa se o narrador é, ou não, o alter ego do autor. A linguagem objetiva, quase coloquial, não carece de floreios. As grandes palavras residem, primeiro, nas epígrafes, recorrentes em muitos de seus contos e saídas da pena do filósofo alemão Friedrich Nietzsche ou do escritor anglo-indiano Salman Rushdie, de um dito popular ou do filósofo brasileiro Gustavo Corção. Pouco importa. A grande palavra que serve de mote conduz à tessitura da fábula, à ilustração do preceito. No final de um texto em que o coloquial predomina, o leitor é duplamente surpreendido: tanto pela chave que fecha as portas da narrativa como pelo arremate sentencioso, que se nos afigura como uma frase de Montaigne ou o fecho de uma fábula. Porém, fábula que rompe com todos os cânones. Primeiro, a concepção aristotélica de nela só admitir os animais. Em seguida, a de La Fontaine, que as escrevia para “agradar e instruir”. Talvez seja melhor falar de apólogo, que pode ser definido como uma narrativa curta susceptível de ilustrar uma verdade moral.
Ocorre que nos contos de Luiz Arraes há uma subversão que nos dificulta defini-los de acordo com os preceitos de praxe. A “moral” ou a “verdade” que deles irrompe transtorna e incomoda. Revela a feiúra de nosso cotidiano. A feiúra se inscreve na soleira do que se costuma chamar a “modernidade”. “Pois o importante para a arte não é mais mostrar o que é apenas ‘belo’, escreveu Baudelaire – o poeta francês reconhecido como fundador da “modernidade” –, que não conseguia conceber um tipo de Beleza em que não existisse Infelicidade. E no conhecido ensaio A desumanização da arte, de 1924, Ortega y Gasset já observava, com propriedade, que a arte “obriga o bom burguês a sentir-se tal como ele é: bom burguês, ente incapaz de sacramentos artísticos, cego e surdo a toda beleza pura”.
O conto O remetente, que empresta o título ao livro, pode ser lido como uma alegoria sobre a própria condição do autor: o personagem envia cartas anônimas às pessoas de seu conhecimento, com o objetivo de criar situações incômodas, transtornar aqueles para quem a vida é “mais vazio do que plenitude”. Até que desiste do intento e resolve escrever para si mesmo, ao reconhecer que é melhor recebê-las do que se dar ao trabalho de enviá-las.
Os contos de Luiz Arraes são como essas cartas, incômodas, que gritam dentro de nós. Incômodo e emoção, como no conto O sonho da criança pobre: aquela que sonha com a mãe sem roxo na cara, com o pai sem bafo de álcool, com alguém capaz de lhe passar a mão na cabeça. Aquela que, finalmente, apenas aprendeu a sonhar cheirando cola e, desde então, “sonha acordada e, quando dorme, tem pesadelos”.
Tenham medo das narrativas de Luiz Arraes.
Não são amenas como as narrativas edulcoradas, que tratam de algum passado épico, ou de amores bem-sucedidos.
Tenham medo dos contos de Luiz Arraes.
Sobretudo se quiserem esquecer, no aconchego de vossos quartos congelados de um último andar, que existe uma outra cidade: a que sonha em assaltar nossos sonhos.
Como os colonizados de Frantz Fanon.
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A ilustração do fundo é de Francisco Toledo, pintor mexicano.
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2 comentários:
Eu fico de queixo caido quando leio um texto, um comentário de Everardo Norões.
E lá vou eu pras pesquisas. E lá vou eu procurar mais fontes até achar Luiz Arraes.
Everardo, voltei a estudar o que nunca aprendi.
Mas por favor não me mande aprender a tocar violão.
Prefiro fazer a guerra, se preciso !
Um abraço.
Everardo,
Muito ilustrativo o texto.
Bem ao meu gosto.
"Os contos de Luiz Arraes são como essas cartas, incômodas, que gritam dentro de nós."
E você, Everardo, consegue inserir poesia no seu relato.
Bom te ler.
Abraço,
Claude
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