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"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
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"

(Carlos Drummond de Andrade)

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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Hoje me lembrei de Eça de Queiroz



A sátira Colorida
Diário do Nordeste,
16.8.2000

Este texto foi escrito na passagem dos cem anos de morte de Eça de Queirós - maior nome do realismo português e artista que influenciou a imprensa e a literatura.

Foi Monteiro Lobato quem deu o diagnóstico. Ecite: esse mal - ou bem - que, de tempos em tempos, altera a umidade relativa do ar em nossa literatura e em nossa inteligência como um todo. Os sintomas remontam ao final do século passado, mas ainda hoje, às portas do novo milênio, são facilmente identificados. Em romances, contos e -aqui e ali - entre um e outro artigo de jornal, pode-se rastrear uma preocupação com os excessos da técnica, da ciência e da civilização moderna; um descritivismo precioso e extremamente refinado; uma permanente lucidez e um afiado senso crítico e interpretativo; uma motivação perene contra o moralismo torpe que engessa as relações. Um profundo mal-estar, enfim, com toda sorte de misérias humanas.

Apesar das idas e vindas ideológicas dos últimos cem anos e da recente estupidez neoliberal, que encaderna com um vigor cada vez maior a cartilha da mediocridade intelectual generalizada, a ecite nunca foi erradicada completamente. Pelo contrário. Em determinados momentos, como nas duas primeiras décadas deste século, a febre ou paixão pelas coisas que diziam respeito à Eça de Queirós não perdeu a força um instante sequer. Agora - quando se comemora o centenário de morte do homem que inoculou esse salutar vírus em nossa cultura -, pelo menos sob o âgulo da celebração da efeméride, sua presença em jornalistas e escritores brasileiros volta a tornar-se uma realidade.

“Eça melhorou o pensamento do povo, da imprensa, as idéias correntes. Seu estilo influiu principalmente no jornal. As elites não o perceberam quase. Eram os moços que compreendiam a sua obra e sua imensa significação”, atestava Oswald de Andrade já nos anos 50. De fato, como jornalista, Eça de Queirós influenciou toda uma geração no País e fez com que o próprio jornalismo brasileiro fosse repensado. Especialmente por suas colaborações nas páginas do jornal carioca “Gazeta de Notícias”, onde Eça escreveu por 17 anos. Esses textos deverão ser reunidos no fim do ano, em Portugal, num volume crítico de quase 700 páginas organizado por Elza Miné, professora de literatura em língua portuguesa da USP.

“(Eça) era lúcido, interpretativo, crítico, inteligente, um exemplo de jornalista”, afirmou Elza numa entrevista recente ao jornal O Estado de São Paulo. Em seus textos no jornal carioca, o escritor, que fazia as vezes de correspondente (primeiro da Inglaterra e depois de Paris), traduzia eventos e imagens da Europa do final do século, comentando livros e episódios políticos relevantes. Entre outras coisas, expunha em tom de galhofa os excessos moralistas da Inglaterra vitoriana, denunciava as mazelas morais e culturais de Portugal e também não perdoava o Brasil e os brasileiros, a quem chegou a chamar, em uma de suas famosas “Farpas”, de “os eternos toscos achinelados da Rua do Ouvidor”.

Apesar disso, o êxito de Eça continuou a correr entre os brasileiros, que o tomavam como um aliado progressista no ambiente tumultuado da propaganda republicana dos últimos anos do Império e da propaganda antilusitana nos primeiros anos da República. “Seus textos tiveram um sucesso imediato no País. Uma possibilidade é em razão da crítica cáustica dos portugueses que Eça fazia em seus romances”, afirma Beatriz Berrini, organizadora das Obras Completas de Eça de Queirós, cujo lançamento pela Nova Aguilar começou em 97 e está sendo concluído agora com a publicação do terceiro e do quarto volume, reunindo respectivamente seus textos jornalísticos e sua correspondência.

Nesse ponto, já o jornalista chamava atenção para o trabalho do escritor que, esse sim, entraria definitivamente para a História. Quando “O Primo Basílio”, por exemplo, apareceu em 1878, um grande debates de opiniões foi travado entre a crítica de plantão: Olavo Bilac, Martins Pena, José Veríssimo, Araripe Júnior e outros. Nota dissonante, nesse contexto, foi apenas a crítica negativa de Machado de Assis (pouco antes de abandonar o ofício da exegese), que, a bem da verdade, pautou-se mais por critérios éticos do que literários. “Um leitor perspicaz terá já visto a incongruência da concepção do sr. Eça de Queirós e a inanidade do caráter da heroína”, escreveu um ainda romântico Machado.

Mas aparadas as arestas entre o desabusado arauto do realismo português e o epígono do nosso Romantismo, o tempo trataria de dar a Eça toda a celebridade possível neste lado do Atlântico. Principalmente depois do lançamento de “Os Maias”, em 1988, para muitos sua obra-prima. “Havia quem não acreditasse no triunfo das novas idéias. Para que a adesão fosse completa e absoluta, faltavam-nos a palavra profética, o verbo incontestável de um grande artista unanimemente querido no Brasil”, derramava-se Adolfo Caminha. “(Eça) não é somente o escritor mais querido dos dois países, é uma individualidade à parte, adorada, idolatrada. Temos para com ele uma admiração que chega às raias do fanatismo”, escreveu Graciliano Ramos.

Nas palavras do professor de literatura e escritor sergipano Francisco Dantas, tanta repercussão se explica pela conversão da crítica em excelência literária que comporta uma linguagem colorida, a sátira contundente e o traço caricatural, elementos que assombravam as rodas literárias. Eça, afinal, fez de sua literatura um documento de seu tempo: acusando a literatura portuguesa de hipócrita e convencional, denunciando a corrupção do clero, desmistificando a hipocrisia burguesa. “O impacto causado por seus livros se deve, em parte, à apurada consciência da situação vigente, ao fato dele adequar a literatura à realidade, atingindo, em cheio, a mornidão romântica, há tantos anos requentada”, explica Dantas.

Todo esse brilho, no entanto, foi se atenuando nos últimos anos da vida de Eça.

Isolado em Paris, praticamente sem amigos, o escritor foi vendo a antiga sanha revolucionária e a verve árdega se atenuarem. Tanto que no seu último ano de vida, chegou a escrever: “... a presença angustiosa das misérias humanas, tanto velho sem lar, tanta criancinha sem pão, e a incapacidade e a indiferença de monarquias e repúblicas para realizar a única obra urgente no mundo, a 'casa para todos, o pão para todos', lentamente me têm tornado um vago anarquista entristecido, idealizador, humilde, inofensivo...”.

A tristeza, como se sabe, não duraria muito. Vitimado por uma amebiase, contraída possivelmente durante uma viagem ao Egito, Eça de Queirós faleceu na capital francesa, no dia 16 de agosto de 1900.

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