Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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quinta-feira, 11 de março de 2010

A Patota



Sei que a gíria é meio obsoleta , meio bandeirosa, mas que jeito? Eles vinham juntos desde os bancos de escola e era assim mesmo que denominavam a turminha : A Patota! Vararam, durante a juventude, os cursos primário e secundário sempre unidos . Foram companheiros inseparáveis no futebol, nas tertúlias , nas bebedeiras de fins de semana. Com o passar dos anos, alguns tiveram que procurar a extensão dos estudos na capital, outros terminaram ficando ali, ganhando a vida no comércio ou como barnabés. Mantiveram, no entanto, o pessoal unido, sempre se juntando em fins de tarde e de semana. Aos poucos, quando os que tinham ido estudar fora começaram a voltar, com o canudo embaixo do braço, o grupo rapidamente se refez. Testemunhas de uma mesma gloriosa geração, nada os conseguiu separar: tempo, nível escolar, condição econômica. Inconscientemente percebiam que o quebra-cabeças da história da vida de todos, dependia de cada pecinha que os membros da patota guardavam cuidadosamente, como uma espécie de Santo Grall. O torvelinho da vida tentou em vão dispersá-los. Paulatinamente foram casando, constituindo família. Esperava-se um afastamento maior da turma, até porque lhes manchava o currículo uma longa folha corrida de bebedeiras , de boêmia desenfreada, de raparigagem reiterada. E a cidade era pequena e conhecia muito bem toda a trupe e suas peripécias. Ao que parece, no entanto, havia uma acordo tácito entre todos. Ainda no noivado, as coisas eram deixadas às claras com a futura esposa: exigia-se um aditivo ao contrato nupcial rezando a total impossibilidade de se dissolver a Patota. Algumas mais ciumentas que acataram as exigências no início e, com o passar dos dias, tentaram arrancar os maridos dos encontros, o que mais conseguiram foi destruir o casamento.
Havia algumas esposas mais inteligentes e que ao invés de lutar contra a maré, procuravam se aliar ao inimigo. Tentavam se integrar às reuniões da patota, coisa bastante complicada, pois aquilo sempre fora uma espécie de Clube do Bolinha. A Patota desenvolvera vacinas contra estas possíveis investidas. Estabeleceram atividades lúdicas variadas, insuportáveis para o sexo feminino: carteado que varava noite adentro, rachas futebolísticos, alpinismo em morros próximos, encontros em botequins de periferia. Até uma adesão em massa à ‘Loja Maçônica Gurreiros Espartanos” se projetou, com a certeza que ali mulher, definitivamente não tem acesso e, mais, o segredo não pode, em nenhuma circunstância, ser quebrado. Estas atividades iam, periodicamente, se revezando. A última invenção havia sido a da maçonaria que acabou por terra quando Dona Diva , a esposa de Argemiro, um dos principais dirigentes da Patota, acabou tendo uma surpresa. O marido estava promovendo festas brancas em uma outra casa e já tinha um exército com três bravinhos guerreiros espartanos.
No sábado, na reunião no botequim de Godô, a Patota viu-se na necessidade de mudar a tática. Estabeleceu, então, a pescaria de fim de semana. A idéia não podia ter sido melhor. Deslocando-se sempre para lugares inóspitos, em beira de açudes distantes da cidade, mulher nenhuma queria acompanhar um esporte radical daqueles. Algumas até que tentaram segui-los por ciúme e curiosidade, mas não passavam da primeira tentativa. O frio, o cansaço, os mosquitos, o despescar das redes que varava a noite, a dormida incômoda, a bebedeira da turma, quem diabos lá agüentava uma coisa daquelas? Quando alguma patroa mais renitente resolvia ir, a coisa andava conforme o figurino. O mais das vezes, no entanto, a pescaria rapidamente se desviava para as orgias de sempre : cachaça e mulheres. Aquela , certamente terá sido uma das desculpas mais duradouras da Patota e durou muitos anos. Tanto e tanto que seus membros, aos poucos, passaram a descuidar dos álibis necessários.
Semana passada, Quintiliano já ia chegando em casa, quando lembrou que não levava uma piaba sequer como produto da sua pescaria de todo final de semana. Correu rápido ao mercado e comprou uns três quilos de pescado. Chegando a casa, uma Dalva desconfiada o esperava à porta. Nosso Martim-Pescador, com cara de cansado, a entregou-lhe o saco, não sem antes explicar que o lugar da pescaria, lá em Lavras da Mangabeira, quase não tinha peixe, estava quase batendo piaba. Dalva, com olhos de Sherlock Holmes, revolveu o saco e , com uma purga atrás da orelha, começou o interrogatório:
--- Que diabos é isso, Quincas? Peixe congelado? Em Lavras, aquele departamento do inferno?
Quintiliano, rápido no gatilho, emendou:
--- Tá doida, mulher ? A gente leva uns isopores grandes cheios de barra de gelo. Lá dentro do mato, não tem geladeira não. Se deixar sem gelo, o peixe apodrece...
Dalva, no entanto, seguiu o interrogatório :
--- Quincas, mas é estranho! E esse carimbo de S.I.F. aqui no peixe ? Que diabos é isso, homem de Deus ?
Quintiliano, agora já mais apreensivo, vendo-se perdido, buscou rápido, uma explicação:
--- Mulher, deixa de ser desconfiada! Não viu na TV, não? O Ministério da Agricultura ta fazendo um recenseamento de todos os peixes dos açudes do Brasil e ta carimbando um por um. É no que dá só assistir novela !
Dalva, no entanto, tinha técnicas de delegado na investigação. Mexeu os peixes no saco, para um lado e para outro e mandou a cartada final:
--- Certo, Quincas, mas o peixe que você pescou, meu filho foi cavala... que coisa mais esquisita... peixe de água salgada... onde é que existe este mar aqui por perto ? Tou doida para pegar uma praiazinha e não sabia desse braço de mar neste fim de mundo !
Nosso pescador tremeu nas bases e, quando parecia já como menino pego roubando a mariola, lascou o único álibi que lhe pareceu possível:
--- Lá vem você com suas ironiazinhas de novo ... Mais desconfiada do que cachorro em noite de São João ! Eu tava era em Lavras da Mangabeira, sua doida! E pescando sabe onde ? No Rio Salgado !
Armou uma cara de revolta e saiu sem conseguir suportar o peso das injustiças desse mundo. Desde então, veja como são as coisas, Dalva anda trombuda, com cara de elefante. E , pelo sim, pelo não, a Patota resolveu , por unanimidade, alterar a pauta das próximas reuniões da turma. A partir da próxima semana estão enveredando pelo ramo das caçadas. Chegaram à conclusão que o IBAMA é menos perigoso que as rodilhas de jaracuçu que eles andam criando em casa.

J. Flávio Vieira

2 comentários:

socorro moreira disse...

Que delícia de texto !
Eu não faço parte de nenhuma das patotas, nem das alas ciumentas X inteligentes ...Mas juro que as entendo !

Muito bom ler vc, meu grande escritor !

jflavio disse...

abraço à socorro que, por ofício de blogueira, vê-se na necessidade de. ler estas potocas