Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
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"

(Carlos Drummond de Andrade)

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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Colaboração de Joaquim Pinheiro Bezerra de Menezes




Arraes e o Natal de 1964

Publicado em 18.12.2010
Ítalo Rocha Leitão

A tarde do dia 24 de dezembro de 1964 se mostrava bastante melancólica para um preso ilustre do Quartel do Corpo de Bombeiros, na Avenida João de Barros, no bairro da Boa Vista, no Recife. Deposto oito meses antes do cargo de governador de Pernambuco pelo militares que haviam golpeado o País e se apoderado dos destinos da nação, Miguel Arraes de Alencar fora obrigado a trocar o endereço nobre do Palácio do Campo das Princesas, na Praça da República, área central da capital pernambucana, por uma cela de quartel.

E foi naquela tarde, quando o sol já dava sinais de despedida, que um homem de estatura mediana se apresentou ao sentinela de plantão para visitar o ex-governador de Pernambuco. Trazia nas mãos não só a disposição e a coragem de afagar o amigo Arraes, mas também um embrulho e nele um presente para alguém que iria passar dali a poucas horas uma insólita e amargurada noite de Natal.

O militar logo desfez o pacote e depois de examiná-lo minuciosamente viu que se tratava de uma obra de arte. Num período de trevas, de tão pouca rutilância, como diria Augusto dos Anjos, visitar Miguel Arraes, um dos inimigos de primeira linha dos militares, não era tarefa para qualquer mortal. A repressão, o medo, a insegurança, a angústia estavam em toda esquina. Mas os pés que pisavam a portaria daquele quartel para ver um dileto amigo eram de um homem de bem, de um homem destemido. Integrante da comunidade judia do Recife, Salomão Kelner era um homem com o sentimento do mundo, intransigente na defesa dos princípios humanitários. A todos acolhia, independentemente de credo religioso ou político. Professor da cadeira de cirurgia geral da UFPE, foi responsável pela formação acadêmica de várias gerações de médicos em Pernambuco.

Dentro daquele embrulho tão esmiuçado, estava um quadro do artista plástico pernambucano Cícero Dias, já radicado em Paris. E quem o levava tinha o desejo não só de se solidarizar com o amigo preso, mas também desfazer um grande mal entendido. Poucos anos antes, quando era prefeito do Recife, Arraes havia comprado em um leilão de artes um quadro de Cícero Dias. Uma semana depois, seu motorista foi buscá-lo e um dos coordenadores da mostra pediu para transmitir a Arraes que, por um equívoco de um dos vendedores, o quadro teria ido parar nas mãos do professor Salomão Kelner, que tivera o mesmo gosto de Arraes e pagara pelo quadro sem saber que o mesmo havia sido adquirido antes pelo prefeito do Recife. Esclarecido depois o mal entendido, Kelner ainda tentou consertar a situação, mas Arraes fez questão que a obra ficasse com o amigo: “Está em boas mãos”, teria dito na ocasião.

Pois foi exatamente num momento tão adverso para o ex-governador Miguel Arraes, onde quase ninguém se atrevia a desafiar a ditadura militar para visitá-lo, com exceção de pouquíssimas pessoas, a exemplo da sua mulher, dona Magdalena Arraes e dos seus filhos, que estava ali o amigo Salomão Kelner. Pouca importava pra ele se iria ser investigado, ou se iria fazer parte da lista negra dos militares, só queria mesmo era chegar perto do amigo, dizer-lhe que não estava só e lhe devolver aquilo que Arraes um dia tanto desejara ter tido: o tal quadro de Cícero Dias. Não conseguiu entrar, mas o presente foi entregue ao seu destinatário. Ao reconhecer o quadro e saber quem o havia enviado, Arraes se sentiu profundissimamente feliz, como nos versos de Cecília Meireles. E, de dentro da prisão mesmo, escreveu uma carta ao amigo: “A sua e outras demonstrações de amizade, de apoio e dedicação que tenho recebido, se não apagam as marcas da injustiça, criam a compensação necessária para que possamos suportá-la”.

O ex-governador de Pernambuco passou aquela noite de Natal sozinho, na escuridão fria de uma cela de quartel. Mas aquele gesto humanístico e destemido do saudoso professor Salomão Kelner ficou marcado para sempre no coração e na mente de Miguel Arraes, que morreu no dia 13 de agosto de 2005, aos 88 anos.

» Ítalo Rocha Leitão é jornalista

Um comentário:

Carlos Eduardo Esmeraldo disse...

Trata-se de uma narrativa profundamente emocionante e que nos revela um sentimento de profunda amizade.