Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

DEDICADO AO ANIVERSARIANTE DO DIA - JOSÉ DO VALE


 Farinhada
- Claude Bloc -

O dia tinha amanhecido muito claro e limpo... No riacho do baixio a água tinha baixado permitindo a passagem da gente e, mais adiante, sob o telhado da casa de farinha, já se podia ver uma montanha de mandioca sendo "raspada", para tirar a casca. Dessa vez, nada de junta de bois. Foram escolhidos alguns homens “fortes” para girar a roda da moenda munida de manivela e dessa forma acionar a bola revestida com lâminas afiadas destinadas a ralar a mandioca. Estava prevista a troca dessa engenhoca manual por um motor que teria a mesma função, mas que certamente agilizaria e facilitaria e execução dessa tarefa que era a mais árdua.

Nesse dia, sentei-me junto às mulheres e às crianças sobre uma lona recoberta com as raízes das mandiocas e me pus a trabalhar. Era um serviço interminável, mas aos poucos, os montes de raízes já raspadas e branquinhas afloravam e se transformavam em montanhas. Depois de raspadas as mandiocas, pouco a pouco, iam sendo carregadas e dizimadas pelo cevador - instalado e montado numa banqueta - que era chamado de “caititu”. Essa era a peça, que servia para ralar a mandioca, e que era movida por um veio (manivela) puxado a mão (como citei acima).

A casa de farinha era grande, coberta com telhas comuns.  Em cada espaço, atividades diferentes iam completando, o ciclo da farinhada. Abaixo da banqueta do cevador, montes de raspas de mandioca iam sendo coletadas e depois carregadas para a prensa onde a massa era enxugada deixando, assim, escorrer o amido ainda líquido. A seguir, esse líquido grosso e esbranquiçado era levado para recipientes próprios e dava-se início a um novo processo que era a extração da goma (amido). Essa tarefa cabia às mulheres. O cuidado era grande, pois a massa era preparada e tratada para haver  a sedimentação do amido e, consequentemente, a retirada da manipueira que, segundo consta, é uma substância tóxica (um veneno) que não deve ser ingerida.

Um dia “Redondo”  que era um dos torradores de farinha caiu teso no pé do forno. Foi um corre-corre danado. Naninha sua mãe começou a chorar.

- Ai, meu “fii” deu uma agonia. Foi bem tu, Cãida,  que num tirou o diacho da manipueira direito. Ai meu “padim Ciço” acudis meu “fii “. Valei-me meu Coração de Maria.

O desmaiado começou a tossir com um bafo de cachaça que espantou a freguesia. E a mãe aliviada agradeceu a Padim Ciço e voltou ao trabalho.

Em outro espaço, a parte da massa composta de raspas de mandioca prensada e enxugada era levada a um forno enorme aquecido por lenha em brasa, onde os forneiros especialistas (dentre eles, Redondo)torravam esse produto espalhando-o com uma espécie de rodo de madeira até chegarem ao ponto certo de torrefação.
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Também no forno eram feitos os deliciosos beijus muitas vezes complementados pela adição de coco ralado ou amendoim moído. Mãe “Cãida” e Naninha eram as responsáveis pelo preparo dessas delícias enquanto a moenda girava e a mandioca se transformava em farinha.
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Pois é, assim decorria o dia e chegava a noite. Na última noite da farinhada a  "coisa" era outra. Apareciam os sanfoneiros, os violeiros, os dançadores de cocos, de baião, os tocadores de “pife” e seu Antõi Coelho dançando “a dança das facas”...

Aí começava a festa. De quando em quando, um golinho de cachaça, um café com beiju e, assim, a noite passava.

Claude Bloc



5 comentários:

Carlos Eduardo Esmeraldo disse...

Prezada Claude

Bonita homenagem! Revivi os tempos em que passava dias dentro de uma casa de farinha. Vivi todo aquele processo tão bem descrito por você. Além do engenho, existia uma grande casa de farinha ao lado da nossa casa no São José, hoje demolida.

Aproveito a oportunidade para deixar o meu abraço para o aniversariante José do Vale.

Abraços

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Um grande presente de aniversário você me deu. Especialmente um clique que aconteceu naquela madrugada o homem a bodejar. De repente o ser rural inteiro, tomou lugar ao centro. Antes vinha um personagem urbano com seus dramas especiais, agora uma mulher voltada para uma vida nunca esquecida, mas certamente superada pelo futuro escolarizado e a moradia na capital.

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Carlos senti seu abraço ancestral, do elo familiar desta imensa história das américas que nos liga. Muito obrigado.

Claude Bloc disse...

Obrigada, Carlos,

Creio que quem morou ou teve a oportunidade de frequentar com assiduidade um sítio, uma fazenda que produzisse farinha, cachaça, rapadura teve a oportunidade de absorver muito conhecimento além do entendimento da alma do sertanejo.

Obrigada pelo comentário.


Abraço,

Claude

Claude Bloc disse...

Zé do Vale,

Eu sabia que você iria entender o porquê dessa dedicatória. Cada vez que mudo meu discurso, você acompanha. Quando (re)vivo ou (re)visito meus interiores saio da monotonia urbana dos meus sentimentos.

Abraço e obrigada por me entender tão bem.

Claude