Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Corrupios

O Rio Paranaporã serpenteava toda encosta da Serra da Jurumenha e cortava Matozinho em duas fatias. Nas margens de suas águas algo salobras é que, historicamente, organizou-se o pequeno povoado que terminou em vila. O Paranaporã passava a maior parte do ano seco como língua de papagaio e os matozenses iam cavando poços no seu leito, no verão, buscando , desesperadamente algum veio de água.Com o crescimento inexorável da vila, as margens do rio foram pouco a pouco sendo ocupadas por casebres e o leito passou a ser o esgoto natural da vila. O antigo rio bonito , como os indígenas o tinham batizado, já não merecia esse nome. Na época do inverno, quando suas águas se encrespavam, o rio procedia a uma faxina rigorosa no leito, limpando toda a sujeira que lhe tinham impingido durante o ano e a beleza de outrora florescia por alguns meses.Esta alegria durava no máximo uns cem dias, logo depois, no entanto, vinha a estiagem demorada e o rio, novamente, se transformava em fossa séptica.
Aquele ano, tinha sido de todo atípico. Os matozenses comentavam frequentemente que na época do dilúvio, em Matozinho ficou apenas nublado. Ali , chuva era coisa rara de se ver , tinha peixe com três anos de idade que ainda não sabia nadar. Pois bem, aquele janeiro mostrou-se inesquecível. De repente, sem que profeta nenhum tivesse previsto, as nuvens abriram as comportas e , durante cinco dias, desabou uma chuva sobre a região, com raio e trovão de estralo. No segundo dia, o Paranaporã já corria fora do leito e, nos outros que se seguiram, desenhou-se uma tragédia jamais vista. Casas boiando, comércio encharcado, praças sobrenadando. Até a Igreja da Milagrosa Santa Genoveva ficou com água quase na torre. Pelo sim, pelo não, os matozenses salvaram a imagem da Santa, antes que o mar de água resolvesse ir rezar na capela: podia ser que com toda milagridade ela não soubesse nadar. Acalmadas as nuvens, os matozenses começaram a computar os prejuízos . Não morrera ninguém, mas restara pouco da vila. O povo, no entanto, tinha treinamento em sobrevivência na selva e PhD em miséria e seus congêneres, impavidamente, iniciou a reconstrução daquilo que um dia havia sido Matozinho.
De pronto os políticos aproveitaram a enchente para preparar o próximo saque: o eleitoral. O prefeito Sindé Bandalheira reuniu a Câmara e juntos solicitaram ajuda ao governo do estado. O governador prometeu mundos e fundos e, como se comentava à sorelfa que o homem era pouco viril, os matozenses sarcasticamente diziam que ele só havia dado a segunda parte da promessa. Se verba apareceu, o certo é que ficou parada no meio do caminho, não teve força nas canelas para chegar nas mãos do povo.
Na década seguinte, o problema repetiu-se por mais algumas vezes. Não na mesma intensidade, é certo. Mas isso foi o suficiente para os matozenses concluírem que aquilo não era apenas implicância de São Pedro mas, talvez, uma revolta da natureza ferida. Perceberam que a tendência seria uma certa regularidade na tragédia. Tanto se contorceram que, finalmente, um deputado conseguiu, junto ao governo federal, um projeto para construção de uma represa na encosta da Serra da Jurumenha que teria a finalidade de esbarrar as águas e, assim, resolver, por definitivo, a questão das enchentes periódicas. A Barragem do Corrupio foi construída, próximo ao açude do Sabugo, há uns cinco quilômetros de Matozinho. A partir daí, a cidade passou a dormir mais tranqüila.
Gato escaldado tem medo de água fria. No ano seguinte à construção da barragem, as chuvas foram, novamente abundantes. O rio, no entanto, represado, manteve-se pacato. Um outro fantasma, agora, começou a assombrar a vila. E se as chuvas fossem intensas demais e a barragem pipocasse? Aí desceria, de repente, um mundão de enchente, serra abaixo e, possivelmente, não escaparia viva alma. As apreensões da população chegaram no ouvido do prefeito e este, preocupado, designou um vigia para a barragem. Tratava-se de Filismino do Sabugo que morava nas cercanias da represa. Sindé Bandalheira o contratou para pastorear a barragem e, em havendo qualquer risco, entregou-lhe uma dúzia de fogos para ele soltar imediatamente. Aquilo serviria de alerta e, mediante o fogaréu nos ares, o povo teria tempo de capar o gato.
Os matozenses ficaram mais tranqüilos. As providências pareciam perfeitas e tudo teria saído a contento, não fossem alguns efeitos colaterais do remédio administrado. Pois não é que naquela sexta-feira, tardezinha, caiu uma chuva forte em Matozinho. O povo ficou de olho no Paranaporã, mas esse não dava sinais maiores de alerta. A chuva continuou, preocupantemente, com o cair da noite, mesmo assim os matozenses se recolheram a suas camas, com um certa tranqüilidade. Eram umas onze horas da noite, quando o alarme de Filismino soou: vários fogos estouraram no céu, lá para as bandas do Corrupio. Foi o estouro da boiada.
Os matozenses danaram-se a correr mato adentro, procurando subir as encostas que se encontravam mais distantes da barragem. Mãe esquecia filho, marido não se lembrava de mulher. De manhã, Pedro Perneta, que andava em cadeira de roda e pedia esmola nas calçadas, foi encontrado no olho de um coqueiro: não me perguntem como tinha chegado lá. Cego recobrou a visão na noite do dilúvio e desabou estrada abaixo. Sueldo Jogó que se recuperava de duas fraturas nas pernas, ainda engessadas, causadas pela queda de cima de um burro, foi um dos primeiros a chegar em Bertioga, correndo e sem muletas.
Quando o dia amanheceu o povo se deu conta de que a tragédia alarmada não tinha acontecido. Só depois, arrochando o velho Filismino, souberam que ele não tinha detonado o alarme. A confusão tinha acontecido por conta de uma renovação que acontecia ali no Sabugo, na casa de Juvenal Fogueteiro. Ele tinha soltado a dúzia de fogos para pagar uma promessa .
A partir daí, a dificuldade foi juntar os fujões. Nunca mais Matozinho teve a mesma população. Passados uns dez dias da ameaça de tragédia, chegou no Correio um telegrama de Sindé Bandalheira, postado no Japão:

“Informem se águas já baixaram PT
Arigatô!
Sindé”


J. Flávio Vieira

7 comentários:

CARIRI CANGAÇO disse...

Sensacional como sempre amigo Zé Flávio, abração. Arigato

Manoel Severo

Claude Bloc disse...

J. Flávio,

Apesar da suposta fantasia matozense, a realidade se delineia gostosamente pelas linhas do texto.
... e você vai "corripiando" a alma da gente.

Abraço,

Claude

Edilma disse...

Dr.José,

O Sr. pinta o sete 3x7 no seu texto bem humorado deixando a vontade de se ler mais ao chegar em "Arigatô".
O que vamos fazer com esse Dr., Claude Bloc?
Como sugestão, criar a "Academia Cariricaturense de Letras"
Eita responsabilidade ter o Dr. José por aqui !
Ainda não tenho o seu livro de "Matozinho".
Como finalisou "Severo"...
Arigatô !

nonato disse...

Dr. José Flávio parabéns pelo brilhante texto.Mas, mesmo distante do Crato, acho que, mutatis mutandis, esse texto, guarda perfeita pertinência com a enchente do Canal do Granjeiro.

Do amigo de sempre,

Raimundo Nonato Rodrigues,o dê.

João Pessoa/PB, 12/02/2011.

jflavio disse...

Abraços ao Severo, á Claude e à Edilma amigos próximos e leitores tão assíduos dessas potocas. Estou em débito com a Edilma. Seu Matozinho tá guardado, viu?

jflavio disse...

Grande Nonato,

Cadê vc homem de Deus? Estamos te esperando por aqui antes da próxima enchente.
Abraço,
Zé Flávio

Aloísio disse...

José Flávio,

Infelizmente cheguei depois do pipocar dos foguetes de Juvenal Fogueteiro, não fosse isso estaria correndo até agora se estivesse em Matozinho.

Abraços
Aloísio

P.S. Estava de férias e sem internet para saber destas notícias