Quando viajamos empreendemos sempre duas viagens. Uma nos afasta geograficamente do lugar onde habitamos e o deslocamento nos transporta, magicamente, para paragens desconhecidas, para novos costumes, novas línguas, novas culturas. Simultaneamente, fazemos uma excursão por nossas trilhas internas percebendo a existência de novas verdades, novos modos de sentir o mundo , outras formas de conviver com miragem estonteante da vida. Viajar de alguma maneira nos completa e , quando retornamos, é como se trouxéssemos as gavetas da alma rearrumadas, os armários do espírito com cada coisa reposta no seu devido lugar. Talvez, por isso mesmo, é que a ida seja tão prazerosa quanto a volta, como se o ir e o vir fossem, exatamente, os cíclicos movimentos de um mesmo pêndulo.
Senti exatamente isso quando visitei o Peru nestas férias. Foi como se voltasse para casa. A desértica paisagem do sul peruano, com sua pluviosidade rara e eventual, fez-me imergir novamente no Nordeste brasileiro, como se daqui nunca tivesse me ausentado. A placidez do humilde povo do Peru se assemelha enormemente à resignação do nordestino frente às adversidades climáticas e sociais. As roupas de cores vivíssimas e alegres, a música farta e escorreita que fluem das flautas fazem-se um contraponto à aridez da paisagem, às intempéries da natureza. Não tão diferente das vestimentas estampadas nas roupas do nosso povo mais simples, de forte influência afro. O peruano, no entanto, é profundamente orgulhoso da sua cultura e do seu país no que difere cabalmente do povo brasileiro, que ainda carrega consigo, mesmo nos tempos atuais, aquele complexo de cão rabugento, de raposa hidrofóbica.
Perambulando pelas ruínas do Império Inca em Paracas, Nazca e Cusco tem-se à nossa frente o filme da destruição de uma das mais avançadas culturas dos Séculos XII ao XV pela ganância do Colonialismo Espanhol, bem mais predatório do que o Português em terras de Pindorama. Os Incas que no seu auge ocupavam um território gigantesco de mais de 1.800.000 Km2, englobando o Peru, o Equador, a Bolívia, o Chile, Colômbia e norte da Argentina, foram dominados, estranhamente, por algumas caravelas espanholas com pouco mais de 200 soldados. Como terá sido possível ? A pólvora? A guerra biológica ? Quem sabe a ingenuidade Inca em acolher o satanás no seio do seu povo, como se enviado de Deus. O certo é que a Espanha perpetrou um dos maiores crimes da história da humanidade em nome da sua ganância incontrolável.
Os jesuítas chegaram com os espanhóis e promoveram a devassa religiosa do Império Inca, destruindo os inúmeros templos e construindo suas igrejas justamente em cima dos antigos monumentos religiosos , boa parte das vezes utilizando as mesmas pedras que estruturavam as paredes antigas. Os próprios Incas já tinham anteriormente procedido de forma igual com as culturas pré-incas. É que os deuses , amigos, são tão mortais como nós humanos. Onde hoje se encontram os poderosos deuses de outrora ? Zeus, Júpiter, Thor, Osíres , Viracocha, Inti ? “Estão todos dormindo, dormindo profundamente...” Que destino aguarda as sumidades do momento : Jeová, Buda, Maomé ?
Em meio as montanhas andinas, viajando pelo Vale Sagrado dos Incas, tem-se imediatamente uma imersão transcendental. Dos pícaros é quase que impossível olhar para baixo, acima tudo parece estranhamente familiar. Em quitchua, a língua oficial dos Incas, Cusco significa umbigo do mundo. Alguma coisa dá à luz dentro de nós quando visitamos a cidade. Bate-nos a solidão de Pachacuti, em Macchu Picchu, esperando candidamente a destruição final do sonho, pelas hostes inexoráveis do senhor Tempo.
J. Flávio Vieira
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