Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Curimã


Zé Curimã, matuto do pé rachado, começou a sentir umas coisas estranhas quando ia para roça. Pelo olho direito via a imagem duplicada. No início, até brincava, apontando para o órgão defeituoso: “Este olho aqui é para cubar moça bonita e receber o apurado do patrão no fim de semana”. Com o passar dos dias, no entanto, começou a se preocupar: a vista começou a ficar meio borrada e depois de umas três topadas em bico do toco, no roçado, resolveu procurar ajuda. Morava nos canfundós do Judas, numa cidadezinha do Rio Grande do Norte, de nome poético e voluptuoso : Caiçara do Rio do Vento. Dirigiu-se ao boticário Filismino, homem versado nos mistérios das raízes de pau e contou suas queixas. O homem lhe receitou uma garrafada que englobava um sem número de meizinhas : malva, jalapa, boldo, carqueja, jurubeba,alecrim, alfavaca,arnica, babosa, capim santo, marcela, meio litro de aguardente, tudo isso colocado junto em uma garrafa e enterrado no chão por quatro dias. Depois de exumada a beberagem foi tomado parcimoniosamente em jejum: uma colherinha no primeiro dia, duas no segundo, três no terceiro, indo num crescendo até o nono dia, quando deveria fazer o movimento contrário pelo mesmo período, subtraindo uma medida do medicamento a cada tomada. Curimã assim o fez, mas ao final, sabe-se lá porque, não teve melhora. Valeu-se, então, de um sobrinho que trabalhava em Recife e para lá partiu, pegando carona em caminhões, até que, uns cinco dias depois, chegou à Veneza Brasileira. Quase não encontra a casa do parente que se escondia em Brasília Teimosa.

Valderedo, o sobrinho, já vivia há mais de dez anos por lá e era fiteiro com uma pequena banquinha próximo ao Mercado São José. Versado nos ínvios caminhos da pobreza, encaminhou Curimã ao Hospital Pedro II que , na época, era o hospital escola da Universidade Federal de Pernambuco. Zé , talvez por conta do estranho da sua doença, teve um atendimento muito humanizado. Os estudantes o internaram e começaram a fazer uma quantidade enorme de exames, até chegar ao diagnóstico. Um tumor benigno que comprimia o nervo óptico do lado direito e que precisava ser operado. Zé teve a sorte de ter como neurocirurgião a sumidade nordestina da época : Dr. Manoel Caetano de Barros. Recuperou-se bem e uns dois meses depois Valderedo o encaminhou de volta à sua Caiçara.

Lá chegou um pouco mais magro e mais falante, com o cocuruto ainda pelado, mas já empenando. Cidadezinha sem meios de comunicação, rapidamente Curimã se transformou na celebridade do lugar : uma espécie de Neymar na Vila Belmiro. Recolheu-se um pouco, fez mistério, mas à noite, não pode resistir à tietagem. Reuniu uma centena de curiosos no oitão da casa e começou a narrar sua peregrinação às terras de Manuel Bandeira. Botou um pouco de tempero na história, exagerou daqui, esticou dacolá. Às duas horas da manhã não tinha chegado nem em Recife ainda. A seção foi então suspensa e, no dia seguinte, reabriram-se os trabalhos, com a mesma audiência. Como não temos a intenção de fazer um romance, vamos resumir a história de Curimã, centrando no mais interessante do relato: os detalhes da investigação diagnóstica e do tratamento.

Curimã necessitou fazer vários exames especializados. Dentre eles, uma punção na coluna para recolher e estudar o líquido que por ali existe e que tem o nome complicado de Céfalo-Raquidiano. Assim descreveu Zé , suas agruras naquele dia, para uma platéia volumosa e boquiaberta.

--- Me botaram dobrado dentro de uma cumbuca. Aí chegou um carcará com uma suvela e começou a enfiar no meu cangote, sem pena, meu sinhô!Parecia que enviava a gaita em saco de milho. Vuco-vuco-vuco ! Só não caguei porque não tinha merda pronta! Quando ele parou, pensei que tinha acabado , mas nada ! Começou a chupar um negócio do meu Tum-tum, tanto, tanto que até os cabelos arrepiados se pentearam em procura do xunxo! Quando terminou parece que eu tinha botado Brilhantina Glostora na cabeleira !

No dia seguinte, Curimã foi encaminhado a uma Clínica Radiológica especializada em exames neurológicos. Fico na sala de espera, meio cabreiro, observando a clientela: um com a boca torta, outro com a banda morta, aquele cego, este mouco, aquele tresvariando. Pelo carrego dos companheiros imaginou que sua situação não era das melhores. Lá para as tantas, saiu uma mocinha numa maca, da sala de radiologia, toda se contorcendo, em plena crise convulsiva. Zé, espantado, fez a pergunta que lhe pareceu mais cabível naquelas horas:

--- Espere ! Todo que entra lá dentro, sai assim ?

Curimã teceu loas intermináveis ao Dr. Manoel Caetano. Aquilo sim é que era um médico ! Salvou minha vida, sem qualquer pagamento! Deus te dê fartura e felicidade e te livre do mal vizinho! Perguntado como estava pela multidão de curiosos, disse que estava muito bem, graças a Deus e ao Dr. Manoel Caetano. Precisava agora só pagar a promessa que havia feito com os Nove Reis Magros. Algum dos circunstantes achou aquilo estranho :

--- Ainda bem que você se recuperou, Zé ! Devia ser muito chato aquilo de tá vendo tudo duplicado. Mas você não tá enganado, rapaz ? Os Reis Magros são apenas três !

--- Três ? Mas rapazes , é mesmo ? Pois acho que foi isso! Eu tava vendo tudo dobrado, pois depois da cirurgia do Dr. Manoel Caetano , curei : comecei a ver tudo triplicado !

J. Flávio Vieira

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