Estive por dois meses em Paracuru, no litoral do Ceará. Aproveitei para ler algumas coisas que precisava e outras que me chegaram em boa surpresa. Vou comentar as boas surpresas desta leitura em alguns textos vindouros.
Começo pelo “Os dois Leandros” do historiador, monarquista e católico Armando Rafael. Ele teve o carinho de presentear-me com seu texto numa impressão ao modo de dizer-se: do próprio punho. O Armando tem uma gentileza com o debate histórico por um motivo que não é comum de se notar. Ele é claro em suas posições, apresenta juízo de valor para os fatos e os interpreta, particularmente neste texto, à luz de sua estrutura intelectual principal: traduzida pelo termo grego “mónos” que é o mesmo que “o único”.
Duas vertentes desta linha intelectual saltam aos cuidados do professor: o catolicismo e a monarquia. O que, aliás, é o ideal da coerência lógica, pois ambos os poderes do espírito e do mundo estão sob a unidade do termo grego acima referido. Como o Armando é um homem do século XX ele tem que avocar, para manter a unidade do seu método, a tradição brasileira traduzida pela propriedade privada (patriarcal), pela família como originária de um “era de ouro” histórica e todo o cabedal moral dos séculos da colônia e do império.
Ao abordar os dois Leandros, avô e neto, saltam os argumentos laudatórios dos dois analisados sob a ótica da monarquia e da igreja católica. Claro que o Armando viaja no vale da realidade histórica da região, mas ao que se propõe, o perfil se adéqua ao figurino da defesa do regime monárquico e da moral católica.
O nosso Cariri é fruto da expansão para Oeste do litoral brasileiro até então ocupado pelos engenhos de açúcar e tão cobiçados pelas nações emergentes da Europa em luta contra a hegemonia portuguesa e espanhola nas colônias americanas. E foi uma marcha conseqüente da solidez dos negócios com a cana e o tabaco que gerou uma população litorânea e, portanto, a expansão da criação bovina na direção da terra “tapuias” e com a ajuda da igreja católica.
O Armando é cuidadoso em suas fontes e nos apresenta várias para escrever este texto, mas tem musculatura intelectual para ir muito além das nossas “fontes tradicionais” do Ceará e do Cariri, que costumam se exceder no “valor dos filhos da terra” e nas origens míticas das famílias tipo aquela descendência do realçado Caramuru. Na verdade muitos descendem dos pioneiros em várias levas chegadas ao longo dos séculos.
Mas se diga que as nossas “fontes tradicionais” se afeiçoam às suas próprias raízes culturais e religiosas e costumam adjetivar inúmeras virtudes ao falar de personagens de um mundo quase isento de conflitos e maldades. Isso é bom como narrativa mítica, mas ruim para compreendermos o processo tal e qual ocorria. Tomadas de territórios dos primitivos habitantes da região, conflitos de propriedade das terras, estabelecimento de uma aristocracia rural arraigada aos seus próprios valores e desconhecendo outros valores e claro a questão central que o processo se povoava por uma escravidão necessariamente violenta.
O exemplo do Brigadeiro Leandro é marcante: ele jamais teria condições de aderir ao frágil movimento de 1817. E não tinha estas condições objetivas que pouco se assentavam no poder espiritual, mas essencialmente no poder do mundo. Ele era um dos eixos da aristocracia rural do cariri; a revolução republicana, mais do que a independência o assustava por ser expressa na memória recente da revolução francesa que fizera o que fizera com as classes patriarcais rurais da França. Além do mais não fica claro isso no momento da possível ingenuidade do José Martiniano ao visitá-lo, mas não tem como negar que perdurou, se antes ou depois, uma rivalidade entre famílias, com os Bezerras de um lado e os Alencar do outro. Portanto estamos falando da velha rixa entre famílias por domínio de poder no interior nordestino.
O Armando procura demonstrar que o Brigadeiro não perseguiu os derrotados de 1817, mas ao apresentar o material histórico nos leva a concluir exatamente pelo contrário. Em primeiro lugar ele deixa claro que o Brigadeiro era o comandante mor das forças militares da região (os filhos tinham as patentes mais importantes). Que ele disputava a hegemonia com Pereira Filgueiras e que reconhecia a força deste é tanto que tratou de neutralizá-lo para ele não aderir aos Alencar. A participação do Brigadeiro na punição dos revoltosos é subentendida pela presença dele e de Pereira (os maiores chefes da região) na sessão da Câmara que condenou os revoltosos. Ora pouco importa que ele não fosse um dos vereadores, que não transportasse os presos e que o governador do Ceará fizesse a prisão de Bárbara na Paraíba, o Brigadeiro foi o “selo” real que despachou o destino dos revoltosos e sua punição. Cinco e sete anos depois o Brigadeiro, mesmo idoso, mantinha a disputa com os Alencar a ponto de ter que se refugiar em Sergipe para não sofrer a represália destes.
Como bem trouxe o Armando: o Brigadeiro tinha uma luta política objetiva contra os liberais e ponto de denunciar Tristão Gonçalves e defender os portugueses no episódio da Independência. Aliás, a posição dele contra as “CORTES” é bem o exemplo de uma matriz ideológica adversa aos liberais.
Por ironia a mexer com a boa paciência do Armando para comigo, tomei do seu texto uma frase de sua referência a J. Dias da Rocha: “Dotado de inteligência pronta, não aproveitou, contudo, para ilustrar-se ou ganhar ao menos medianos conhecimentos (J. Dias da Rocha) Era iletrado”. Neste ponto assemelhado a certo político de relevância no Brasil atual. Com bem diz J. Dias da Rocha: Também, o atrasadíssimo estado da capitania não lhe permitia oportunidade de colhê-los.....
3 comentários:
Tanta coisa da nossa história que não sabemos!
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Meu caro Zé do Vale:
Como sempre, esta sua análise – burilada sobre um escrito ao qual tem alguma restrição – não foi feita com a agressividade que caracteriza os defensores de que tudo (ou quase tudo) advém unicamente das “lutas de classes”.
Obrigado por suas palavras serenas, divergentes, mas caracterizadas pela ausência de birra ou ranço ideológico. Vai nisso, provavelmente, o seu DNA, duplamente Bezerra de Menezes!
(Sim, porque – entre surpreso e satisfeito – fiquei sabedor, através de pesquisa do seu parente, padre Neri Feitosa – de que parte do clã Feitosa dos Inhamuns carrega também no sangue a descendência e hereditariedade dos Bezerra de Menezes, ramo do Riacho do Sangue, que se bifurca no mesmo agrupamento familiar do Cariri cearense).
(continua)
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Isto posto, permita-me apenas acrescentar um dado sobre a escolaridade do primeiro dos Leandros, o brigadeiro.
Este, apesar das limitações do meio cratense no século 18, foi incluído pelo insuspeito J.de Figueiredo Filho (ver “História do Cariri”, volume IV, página 7) entre os homens cultos, plasmados na bisonha Vila Real do Crato, cfe. parecer abaixo:
“Ofícios e cartas que ficaram do Brigadeiro Leandro Bezerra Monteiro, visceralmente conservador, demonstram certo grau de cultura”.
Comprovando, assim, o que disse J. Dias da Rocha: o velho brigadeiro nunca encarregou ninguém de escrever seus escritos. Fazia-o do próprio punho. E mesmo na velhice preferia ditar suas cartas e ofícios, dispensando redação de terceiros.
Notável e ainda inexplorada a personalidade do brigadeiro Leandro. Meu modesto trabalho (coisa de aprendiz de escrevinhador) é apenas a ponta do iceberg sobre aquele seu ancestral, bem definido por nosso antigo professor, monsenhor Montenegro, como “o mais ilustre dos cratenses”.
Cada dia mais me convenço que o século XXI não será o “Século dos Revolucionários”, como o foi o século passado...
E o tempo corre a favor de uma completa restauração da memória do velho Brigadeiro Leandro.
Quem sobreviver verá...
Armando
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