Sua voz era grave e rouca. Cabelos claros, olhos azuis, saia rodada, um avental surrado e arrastava um par de chinelos de couro pelo chão.
Meus olhos infantis mergulhavam no cenário da casa de lanche do interior. A cozinha no fundo do quintal abrigava um enorme fogão à lenha e as labaredas do fogo tremiam sob o meu olhar de espanto. Por cima das lascas de lenha as línguas de fogo pareciam dançar saltitantes entre amarelos e vermelhos. O calor era sentido a certa distância e me deixava incomodada e curiosa.
Todo o trabalho iria começar : A tradicional merendeira trazia nas mãos com certa dificuldade e cuidado um grande tacho de bronze onde iria depositar uma quantidade de leite puro e perfumado. De uma lata retirava varias medidas de açúcar um pouco escuro e ia aos poucos misturando. Diante da alta e forte cozinheira eu parecia mais franzina e pequena do que era na realidade. Olhos atentos observavam o vai e vem da grande colher de pau que por um instante mais parecia um remo de um barco.
As paredes eram cobertas por fuligem negra e eu via as teias de aranhas no alto do telhado, brancas e brilhantes. Aos poucos se ouvia o borbulhar do doce que começava a encher a velha casa de um aroma delicioso que despertava a fome do meu estômago. A cor do leite se tornara acaramelado e se ouvia o som da colher de pau raspando o fundo do tacho. Era o sinal de que o doce estava ficando no ponto.
_ Está quase pronto ! Falava com sotaque e rouquidão.
Em silencio, sentada num pequeno tamborete, eu aguardava à chegada dos fregueses...
Eram retirados os pedaços da lenha e por cima das brasas depositado um flande que iria manter a temperatura por um tempo. O doce era servido quentinho.
Tinha apenas uma mesa na sala e algumas cadeiras arrumadas sobre o chão de tijolos vermelhos. Curiosamente observava que a maioria dos fregueses eram homens e chegavam sempre no mesmo horário e com a mesma pergunta :
_ Dona Hortência, já tem doce pronto ?
Pequenos pratinhos iam saindo um a um cheios de doce de leite e eu corria feliz para levar as colheres de latão. Os sorrisos agradecidos e satisfeitos se estampavam nos seus rostos com a promessa de retornarem no dia seguinte.
E agora estava chegando o momento tão esperado por mim. Primeiro, lavar a louça, depois guardar em potes de vidro o restante do doce e em seguida, raspar o tacho com uma colher estranha que de tanto uso, só tinha uma banda. A raspa era escura, diferente do da freguesia, mas o sabor, especial. Sentávamos à mesa e Madrinha Hortência cantarolava um bendito da Igreja enquanto fazia pequenas bolinhas das sobras e as depositava num prato grande.
Finalmente eu saboreava o mais delicioso doce que a minha memória guardou para sempre...
Edilma Rocha
( Texto dedicado a Evaldo, amigo de infância dos arredores do Assaré )
7 comentários:
Edilma, suas recordações são muito ternas e doce. Parabéns! Apareça mais para adoçar esse blog. A sua presença e a de Claude são de grande importância. Fica tudo sem graça sem vocês.
Um grande abraço
Magali
Enviado por e-mail:
Edilma,
Agradeço a deferência em me dedicar essa maravilhosa crônica em que relata os afazeres de D. Hortência, figura da maior dignidade humana na convivência e trato para com as pessoas.
O que você disse é real, pois o doce de D. Hortência era famoso no Assaré e nas redondezas.
Evaldo
Tão doces recordações, que fiquei até com água na boca!
Delícia de post. Fiquei sorrindo de felicidades ao ler, consegui sentir o cheirinho do doce de Mamãe.
Abraços, Edlima e Parabéns pelas lembranças bem relatadas...
Cristiany Lacerda
Magali,
Fico feliz também com a sua presença aqui no Cariricaturas.
Estive ausente mas espero comparecer mais e com isso manter este maravilhoso contato com os meus amigos verdadeiros.
Beijo !
Edilma
Evaldo,
Madrinha Hotência era minha tia avó materna e eu sempre estava no Assaré nas férias. Sr. Modesto era o marido dela e me divertia muito ouvindo as suas histórias.
As raspas do doce eram para os sobrinhos filhos de Terezinha e Telma. Terezinha, irmã de Patrocinea sua mãe. Estes são nossos laços de família.
Que bom ter gostado do relato adocicado.
Grande abraço,
Edilma
Cristiany,
Se lembrou do doce da sua mãe e ficou feliz, me sinto compensada por isto.
Retribuo o seu abraço !
Edilma
Edilma,
Você tem um dom inegável: contadora de histórias.
O melhor em todas elas é seu bom humor e a alegria que a gente sente em cada linha. Por isso, são textos cativantes que todos gostamos de ler.
Abração, menina!
Claude
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