Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O Alpendre - Por Claude Bloc


Sempre me lembro, mesmo quando passo muito tempo sem ir à Serra Verde, dos meus mais antigos e doces momentos vividos ali. Impossível não lembrar, impraticável tentar esquecer. As imagens são fortes e precisas. As lembranças vão e vêm como um vídeo que gostamos de repetir. Algumas cenas, porém, aparecem estáticas, como se (in)conscientemente eu as quisesse eternizar. E assim é, realmente. Não esqueço. Refluem sempre os dias ensolarados ou chuvosos. As rocinhas no inverno. A horta de mamãe. O jardim com jasmim, bugari, espirradeira, japão, buganvília, crotes, roseiras... Infinidades de cheiros e cores a cada final de tarde. O pôr-do-sol no Alto do Caboclo.

Reencontro naquele cenário, minha família inteira, seus sorrisos, seu amor caloroso, seu afeto aconchegante e barulhento. Minha avó paterna que chamávamos de Mamy Huguette, meu avô paterno que chamávamos de Papy Georges... O carinho, a doçura do tempo sempre pintado em tons pastéis, tempo em que o sofrimento da guerra fora banido pela chegada dos netos e o pelo calor brejeiro do sol brasileiro.

A casa-sede era meu reino. Os alpendres sempre acolheram benevolentes meus sonhos infantis e depois embalaram minha idealização de vida, quando adolescente insegura e romântica. Foi nesses alpendres que percorri muitas histórias que nasciam sob as rodas do meu velocípede verde. Creio que foi nesses momentos que eu compus meus mais lindos poemas. Aqueles que nunca escrevi. Aqueles compostos por uma criança que sonha sempre e que tece o fantástico no seu ideário, que escreve na imaginação todos os seus “tratados de vida” em forma de poesia pura e sincera - pensamentos !

Ali era ponto de encontro também. No alpendre, bancos sertanejos acolhiam os moradores enfermos, que vinham pelas mãos de Seu Hubert, receber as “meisinhas” pra curar suas dores. As comadres que vinham fazer curativos em suas “crias”, de quem Dona Janine cuidava com esmero e com a paciência de uma enfermeira de primeira grandeza.

À tarde, do lado do açude, também no alpendre, armávamos redes para uma “pestana” depois do almoço. O sono chegava debruçado sobre as imagens de uma revista em quadrinhos do Super-Homem, Mandrake, Sobrinhos do Capitão, Capitão Marvel e outros que faziam parte da escolha pessoal de papai e, consequentemente, da nossa.

O alpendre também era o regaço que acolhia meus lamentos. Sentada no parapeito, olhando para as águas do açude, eu confabulava com as ondulações dos meus sonhos. Lá eu depositei minhas primeiras lágrimas. Uma palmada indevida. Uma reclamação mal entendida. E depois, a evidência de sonhos desfeitos ou burlados pelo desencaminhamento dos meus passos. O alpendre foi meu confidente eterno. Ainda posso ouvir os ecos dessas histórias quando passo por elas no alpendre, quando lembro das marcas das rodas do velocípede no chão de cimento liso e lustroso e do que representam essas marcas em minha alma.

A casa inteira guarda ainda os passos de crianças que ali reinaram nesse reino de nada, mas onde tudo acontecia. Era imponente a casa em sua simplicidade de casa de sertão, pois ficava no alto de uma ladeira e na sua parte frontal alguns degraus permitiam o acesso ao alpendre, o que nos dava a impressão de estarmos diante de algo majestoso. Mas... a casa sozinha era nada. Era apenas o vazio dos sons de nossas vozes e de nossa presença. Um eco de uma saudade grande.

As férias eram sempre agitadas e concorridas por amigos e primos. As brincadeiras eram geradas e regidas por nossas necessidades de agitar a vida - pacata demais para tanta reserva de energia. Banhos de açude, passeios a cavalo, guisados, renovações, moagem, farinhadas, eventos nunca esquecidos. À noite um gerador nos fornecia e energia necessária até 22 horas quando papai apertava o “botão da noite escura” e nos apressávamos para encontrar nosso cantinho pra dormir. Depois de maiores, rebeldes, jogávamos baralho à luz de candeeiros ou velas e assaltávamos a despensa para garantir o sossego no estômago.

E eram assim os dias: um dia aqui outro ali no Crato. Meninos de todas as idades. Sonhos de todos os tamanhos. E no que nos tornamos? Eu poderia dizer, mas é bem melhor que todas as respostas permaneçam no alpendre da casa. No vazio que deixamos quando crianças crescem. Quando restam ali apenas as nossas marcas.
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Texto e foto por Claude Bloc
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6 comentários:

socorro moreira disse...

Os alpendres ou varandas , ainda nos acolhem. Parte infantil que não morre .

Eita , moça que sabe contar a poesia sonhada !

Corujinha Baiana disse...

Posso lhe dizer uma coisinha ?

- Esse "seu" Alpendre é de causar inveja !!!!

Um abraço

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Claude,

Ao mesmo tempo que se comunica numa linguagem universal, diz uma coisa que alguns sentem na medula. Automaticamente, sem raciocinar ou puxar imagens. Este relato será cada vez mais objeto de uma narrativa externa ao mundo da maior parte das pessoas. Não é possível contemplar a vida sem eletricidade, o açude por fonte, a junção de muitas gerações no mesmo espaço, os detalhes da vida rural enfim. Este texto embora busque por imagens tocar as pessoas exclusivamente urbana, ter uma espécie de cobreiro sobre a pele. A larva migrans subcutânea de um pé na roça e outro na cidade.

Stela disse...

Eita, Claude, eu também tenho lembranças fascinantes de alpendres.
As mais inesquecíveis: olhar para a igreja de São José no arruado da Ponta da Serra (parecia tão distante e era tão pertinho); e a outra era, de manhã bem cedinho, depois de uma noite de chuvas fortes, esperar que estiasse pra correr para a casa de vovô e olhar a cheia do rio Carás, trazendo suas águas para beijar os pés da ladeira, um marzão d´água:o rio e o riacho, que chamávamos Correntim, formando um mar de águas barrentas, as plantações alagadas. Abraço de água e terra.

Edilma disse...

Claude,

Me vi em cada cantiho da sua historia vividas no alpendre da Serra Verde. Corriamos do alpendre para dentro por alguma traquinagem e do alpendre para fora por uma aventura. Sinto-me previlegiada de ter convivido com a sua familia.
Tenho conhecimentos que carrego até hoje na minha bagagem como pessoa aprendidos numa cultura europeia. Faço parte da sua vida como você faz parte da minha.
Lhe elogiar pelos seus textos é muito pouco por tantos outros valores que possue como ser humano
Lhe tenho como uma irmã, uma amiga e companheira...
O alpendre continua vivo...

Beijos !

Armando Rafael disse...

Claude,
A saga da Serra Verde está a merecer, quando nada, um opúsculo para preservação da memória...