PARTE DA TESE DE DOUTORADO DEFENDIDA, EM 1997 NA COPPE/UFRJ,
POR MAURÍCIO CÉSAR DELAMARO:
“Numa primeira aproximação, digo que a Ética surge como ciência do ethos. Ou, como saber racional sobre o ethos. Nela está presente a centralidade do logos discursivo.
Para Aristóteles - que, seguindo Sócrates e Platão, se propõe a constituir a Ética com um estatuto de saber autônomo - a existência do ethos é indiscutível. O ethos se apresenta, primeiramente, como “costume, esquema praxeológico durável, estilo de vida e ação”. Neste sentido, ethos é morada do homem. Torna o mundo habitável, pois rompe com o reino da natureza ou physis - caracterizado pela regularidade e onde impera a necessidade - para abri-lo ao reino da liberdade, onde imperam os costumes, os hábitos, as normas, os interditos, os valores e as ações significantes. O ethos é “morada a partir da qual a realidade se descobre como dotada de significação e valor”. A sua característica de durabilidade não significa que o ethos em tanto que espaço existencial humano possa vir a ser, em qualquer tempo, uma morada pronta e acabada. Cabe ao homem, incessantemente, reconstruí-la.
Num segundo sentido, ethos diz respeito aos hábitos apreendidos pelo sujeito singular, graças à repetição. O ethos, aqui, manifesta-se como constância no agir que se contrapõe aos impulsos do desejo e das paixões. A constância, adquirida pela repetição dos mesmos atos, não advém do reino da necessidade que é a physis, mas, sim, do ethos, em tanto que costume.
Uma questão fundamental. O ethos como costume, estilo de vida e ação; enfim, como morada; embora construído e incessantemente reconstruído, não é pura invenção e criação da arbitrariedade humana. Ele é o espaço, por excelência, onde se manifesta o finalismo do Bem. É um espaço teleológico. É na morada do ethos “que o logos torna-se compreensão e expressão do ser do homem como exigência radical do dever ser ou do Bem”. O ethos, então, não é pura e simplesmente construção do homem tal qual ele se apresente, casuisticamente, nas diversas épocas histórico-culturais; é, antes, espaço de auto-construção do homem segundo uma finalidade que é sua: o Bem.
A articulação entre ethos como morada e ethos como hábito pode, então, aparecer. O primeiro é o conjunto de princípios, normas e estilos que plasmam o segundo. Quando a praxis humana - não acidental, mas regida pela constância do hábito - está conforme ao ethos como morada - ela pode ser chamada ética. E o hábito, aí, é virtude.
Esses dois momentos do ethos é que possibilitam Platão a edificar a ciência do ethos não apenas como ciência da Justiça e do Bem, mas, também, como ciência da ação boa e justa, que é ação segundo o hábito que é virtude. É justamente a ação humana - que, repito, é o percurso entre o que o agente é e o que o agente tende a ser, segundo o finalismo da ação - que representa a instância mediadora entre a universalidade abstrata do ethos como costume e a universalidade singularizada do agente no ethos como hábito.
A concepção do ethos como espaço teleologicamente orientado para o Bem - ou “como a face da cultura que se volta para o horizonte do dever-ser ou do Bem” - é congruente com a formulação de uma ciência do ethos como ciência do Bem. Mas, para tanto, a Ética deferia ser fundada sobre um tipo de conhecimento ou saber absolutamente primeiro: uma ontologia. Ela depende da possibilidade de se chegar ao conhecimento do logos do ser, a uma arqué panton - um princípio de tudo -, um Absoluto transcendente, eterno, imutável. A forma de se chegar a tal conhecimento seria a contemplação, ou teoria. Então - entendendo teoria como era entendida por Platão e Aristóteles, ou seja, como contemplação do Absoluto - podemos perceber a Ética como instância mediadora entre a teoria e a praxis.
A teoria e a praxis expressam dois modos do homem ser, com posturas específicas frente ao mundo. A teoria está “voltada para as coisas, aliás, em última análise, para aquilo que, nas coisas, (é) imutável, eterno, divino. Ela pretende articular um saber apodíctico da ordem universal de todas as coisas em suas estruturas essenciais. Através desse saber, o homem entrava em sintonia com a harmonia da ordem cósmica e se assemelhava ao ser divino, pensando como contemplação pura”. A praxis, em contrapartida, refere-se à ordem do contingente e do condicionado: aos modos concretos de viver institucionalizados na convivência dos homens através dos costumes e estilos que regulam e sustentam as formas concretas de ser homem. No entanto, é dentro desse mundo condicionado que está em jogo a conquista da humanidade do homem: a praxis é “ação através de que o homem se faz homem, isto é, através de que suas potencialidades se atualizam e ele conquista seu ser,(...) é a ação dos homens na busca de si mesmos, e o realizar-se do homem na ação pela mediação da ação, é, em última análise, auto-construção do homem segundo a ordem cósmica universal”. E, como a teoria tematizava a ordem universal, perante a qual o homem situa sua ação, o papel primeiro da Ética como ciência era o de oferecer ao saber prático os pressupostos gerais da ação, sempre adequados à teoria.
Eis, aqui, o porquê da Ética não ser pura e simplesmente a codificação racional do ethos histórico vivido por uma comunidade. Mais que codificadora, ela tem um papel de crítica, de reforma, de atualização e revigoramento dos costumes e instituições vigentes em determinado momento histórico, pois que busca adequá-los aos pressupostos gerais advindos das intuições da teoria e, em suma, do Absoluto eterno, a-histórico, transcendente.
Faço notar, ainda, que o fundamento primeiro - o Absoluto, que é origem de tudo, princípio absoluto, causa inicial - é também causa final ou objetivo último da vida humana. Tal concepção foi trabalhada filosoficamente de distintas formas na história do ocidente, mas permaneceu uma constante em diversas de nossas modernidades. Por exemplo, o Bem platônico, a Natureza aristotélica e o Deus cristão são, ao mesmo tempo, causa inicial e final. A busca humana desse Bem fundamental último está articulada a bens que lhe são subalternos, cuja vivência concreta pelo sujeito singular e histórico dá-se como exercício de virtudes. Cada uma dessas vivências é “... como uma atualização de uma excelência segundo um fim não redutível ao indivíduo-tal-como-ele-é, mas que o molda, através da moral, para ser tal-como-ele-deve-ser-segundo-o-fim-que-é-seu”.
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