Passado o mês de São João
Começava a inquietação
Porque a gente já sabia
Que muito em breve viria
A moagem no Caboclo
De manhã, muito cedinho
Encostava um caminhão
Era João de Anunciada
Anunciando a chegada
De um tempo de animação
Na Chevrolet meia dois
Uma carrada de menino
Uma caixa de brinquedo
Gaiola de passarinho
E o resto, ia depois
Entre curvas e ladeiras
Unha de gato e jurema
Lambendo a carroceria
Uma friagem na barriga
Fazia a nossa alegria
Numa madrugada fria
Aquele ronco sonoro
Do motorzão National
Fazia a gente acordar
Transbordando de euforia
Era o início da moagem
E quem é que não se lembra
Que não guardou na lembrança
O ronco desse motor
Embalando o nosso sono
No quarto da casa grande
Menino mijando em penico
Com pijama de flanela
Espera o leite mugido
No batente da janela
Encostado ao oitão
Um curral grande de vara
Onde a vaca “ouro branco”
Ruminando a noite inteira
Badalava o seu chocalho
Uma junta de boi gordo
Puxando um carro de boi
Pela estrada apitando
Mané Pedro carreando
Tudo isso, já se foi
Seu Zeca, cacheador
Zé Costa fazendo cerca
A pipoca de Olegário
Zé Carneiro com tomate
Sá Rosa lavando roupa
Compadre Chico no eito
Zé Nunes na bagaceira
Sá Nanô com catolé
Teresa Doida, sem tino
Fazendo medo a menino
No domingo ensolarado
Seu Geraldo na labuta
Meninada a passear
Visita Maria Luta
Medonha, sem se banhar
Menino chupando cana
Com o bucho sujo de lama
Montava cavalo de pau
Caçava de baladeira
Tomava banho de rio
Num palhiço queimado
Carcará fazendo a festa
Gavião peneirador
Procurando a sua caça
Encantando a meninada
Entre a casa e o engenho
A bagaceira era um tapete
O gado solto a pastar
Uma cana de alfenim
E a rapadura no bagaço
Numa noite enluarada
Gente grande a conversar
Menino brincando ao léu
Com Lúcia e Nina a cantar
“Olhando para o céu”
Hoje não tem mais engenho
Acabou-se a moagem
Foi-se a doçura da cana
Ficando em mim a lembrança
Desse tempo de criança
Ficou comigo também
A saudade, a imagem
Da mais doce alegria
Que hoje, o engenho do tempo
Vai moendo dia a dia
Marcos Barreto de Melo
3 comentários:
J. Marni,
Gostei demais da postagem.
Abraço de Ano Novo pra você e Fátima.
Claude
Caro João Marni,
feliz lembrança a sua, de postar esse poema de Marcos. Reproduzo aqui o que escrevi para ele quando vi este poema pela primeira vez>
Marcos,
Que beleza, esse engenho do tempo! se, por um lado, ele mói a doce alegria da infância, que fica bem longe no tempo, também refina a bagaceira da vida e mostra o cristal - não do açúcar, mas das lembranças de meninos em tranças e afetos, coisa mais preciosa da vida.
Gostei muito - dessa imagem que encerra de modo preciso o poema, e das cenas que você desfia e nos dá de presente, mel escorrendo da vida e de sua sensibilidade. Moagem poética que flui de modo tão natural e parecendo nascer já pronto.
Continue, que o motor está muito bom!
grande abraço,
Ana Cecília
Fiquei fascinado quando li este poema, pois mostra que "cantando sua aldeia é se fazer universal". Ele me transportou aos meus tempos de criança, pois também sou matuto, embora em "minha aldeia" não existisse engenhos, as imagens contida nestes versos passam em minha mente como estivesse vendo um filme. Parabéns Marcos
Postar um comentário