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"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Vegetalizar o poema - Hildeberto Barbosa Filho


Lendo os poemas de Everardo Norões, reunidos em Retábulo de Jerônimo Bosch, é impossível não pensar nas implicações semânticas deste título. Pintor holandês da transição do século XV para o século XVI, Bosch tematiza, por meio de cores fortes e de técnica libertária, os antagonismos entre céu e inferno, em meio aos quais o homem se debate desesperadamente contra seu inimigo eterno, transmutado em diversas figurações: animas, vegetais, monstros, duendes, seres fantásticos, enfim, toda uma grei que o cerca de terror e de espanto. Os paradoxos, as antíteses e os oxímoros, associados à plasticidade das metáforas, constituem, portanto, os recursos naturais de sua sintaxe pictórica.

A correspondência entre poesia e pintura não se dá, aqui, tão somente por esta ou aquela alusão que algum poema faça ao criador do “Jardim das delícias”, mas, sobretudo, porque a poética de Everardo Norões, desde Poemas (1999) e A rua do padre inglês (2006), assim como na obra em foco, deixa-se habitar pelos elementos da natureza. Em essência, os quatro elementos (ar, água, fogo e terra), como também seus derivados: frutas, bichos, objetos, paisagens, personas... Tudo, no entanto, submetido a um dinamismo metafórico e sinestésico que protagoniza, assim como em Bosch, os eternos conflitos da alma humana.

Sua poesia, por conseguinte, trai, de início, um compromisso frontal com o dizer, entenda-se o dizer como o conteúdo pensante e afetivo da mensagem, em que pesem, sempre na arquitetura de sua dicção, o logos do fazer,o sentido de depuração estilística e a consciência da linguagem. Seu lirismo, como bem percebeu Fábio Andrade, em breve ensaio que lhe dedicou na revista Crispim, número 2, “não é transbordamento sentimental do verso, mas, ao contrário, força de concentração e depuramento poético de todo excesso que traga facilidade no sentir”.

Nas sete partes do livro é este o princípio que rege as estratégias do discurso. Os treze primeiros poemas como que ensaiam um pequeno tratado da memória, um exercício de recordar, isto é, de trazer o mundo de volta ao coração como sugere Emil Staiger, nos seus Conceitos fundamentais da poética. Porém um recordar que dispensa o saudosismo romântico, que foge ao lugar-comum da “poesia-lágrima”, para injetar, no corpo da lembrança, o sal de um olhar cético, distanciado, aberto à presença de aspectos invisíveis e de ingredientes insuspeitados. O poema de abertura já define o modus operandi do poeta:

O canário
debulhava trinados.
Na rede
fluíam fábulas.
Sobre muros e telhados
os urubus empinavam
lições de trevas.
No alto,
apenas uma nuvem
me escutava.

Observe-se que o procedimento descritivo não é nada linear. Não há intenção realista na composição do quadro. O locus, que não é ameno, é descrito por sugestão, diria por desconstrução da tópica tradicional, o que, não diluindo a substância emotiva, essencial à fatura do poema, instiga o pensamento e a reflexão. Eis uma técnica que se repete e repercute nos outros textos e que, decerto, define a linguagem de um poeta. No poema número 3, cujo motivo é a cabra, as “estacas” se transformam, num belo e ousado exemplar metafórico, em “retas submetidas / à álgebra do cativeiro”, e a própria cabra, um desses bichos que reside na morada poética de Everardo Norões, “De longe, resplandece: // focinho de luz ondeante, // a deslumbrar entre galhos”.

Descrições estranhas de coisas conhecidas, o familiar se transformando no insólito, os objetos se apresentando de maneira criativa, a energia visual, olfativa, tátil, melódica, gustativa impregnando os seres, os âmbitos, os lugares, os climas, as atmosferas, tudo converge, nesta poesia singular, para a medida lírica concentrada, para a linguagem como item aglutinador de dispersos fragmentos, para a harmonização dos vocábulos, no plano geométrico da forma, face ao caos natural que rege o movimento da matéria. Veja-se, por exemplo, qualquer texto da segunda, terceira ou quarta partes. Quer me detenha no ludismo conceitual e imagético de poemas como “Goiaba”, “Pitanga”, “Buriti” e “Hortelão”, quer atente para a metalinguagem indireta e oblíqua de “Mancha” e “Euclides”, tudo nos leva ao brilho e ao império transfigurador da linguagem e à desautomatização do olhar. Leia-se o poema “Euclides”: “O fascínio do cacto. // A ponta do espinho. // A fulguração do tiro. // Vegetalizar o homem: // tudo tornar folha, // corroída // pelas minúsculas formigas // das letras”.

“Vegetalizar o homem”: considere-se a força metafórica deste verso. Diria que Everardo Norões intenta vegetalizar o poema, encharcando-o com os líquidos vitais da natureza orgânica. A propósito, fundir os reinos animal, vegetal e mineral não consistiria num eco poético de Bosch contaminando a pintura vocabular de Everardo? “Sob as palavras // tudo se transfigura: // a urze, a pedra, o horto.”, diz o poeta em “Mancha”. “Flamboyant”, por sua vez, assim termina:

sou
apenas a ferida
no alto de uma tarde
uma coroa de espinhos
no silêncio.

Em rápida entrevista, também publicada na Crispim, número 2, o poeta afirma que a poesia, para sobreviver, “tem que revelar todas as coisas que o olho comum não vê”, ou, à maneira de um Manoel de Barros, “precisa guardar o cheiro de nossos quintais”. Pois bem: a manufatura apurada, de teor erudito, urbano e cosmopolita, não deixa, contudo, de compactuar com as raízes telúricas, com os veios identitários do seu ethos cultural, com os mitos de origem, embora este pacto, na expressão poética deste cearense-pernambucano, não se feche, em momento algum, ao intercâmbio com outras geografias literárias, numa dialógica intertextual das mais ricas e variadas. Basta perceber a componente européia, árabe e africana que o autor aproveita na tessitura de tantos versos.

Para além de Bosch, que detecta o homem acuado sob garras de inimigos cruéis e monstruosos, aparecem, na lírica de Everardo Norões, outras vozes que sinalizam para a propositura do humano, para a perspectiva do poético, para a opção seminal da experiência artística, face à barbárie dos engodos materiais e tecnológicos que a razão, aquela razão a princípio humanística, depois instrumentalizada, não conseguiu evitar. Neste sentido, sua poesia, como toda autêntica poesia, é germe de resistência, é “técnica a serviço da emoção”, no feliz enunciado de Marco Lucchesi, em nota de orelha sobre A rua do padre inglês.

Lucchesi, aliás, o poeta Lucchesi, vê-se representado, neste Retábulo de Jerônimo Bosch, num dos seus mais belos poemas, “O coração do poeta”. Texto dramático em que o coro, a primeira e a segunda voz operam como que uma espécie de dissecação estético-visceral deste autor que, ao lado de nomes como Euclides, Faulkner, Ovídio Martins, Hafiz, Hemingway, Rimbaud, Santo Agostinho e Ovídio, entre outros, compõem o complexo de suas “afinidades eletivas”.

Lendo os poemas de Everardo Norões, revivo a experiência decisiva das epifanias poéticas, convicto de que, entre tantos fermentos da vida cultural, a poesia é indispensável, sobremaneira quando a poesia não teme o limite do verso, não abdica da origem metafórica e, em especial, não se compraz, a exemplo de tantos arrivistas das falsas formas, na lúdica mitografia da linguagem pela linguagem, no artifício vazio dos metabolismos experimentais, na pirotecnia tautológica do grafismo ou da página em branco.


Comarca das Pedras, maio de 2008.

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