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(Carlos Drummond de Andrade)

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segunda-feira, 19 de abril de 2010

O preço de ter duas línguas

O modo como os povos reagiram ao bilinguismo pode revelar curiosas formas de convivência entre as culturas

Aldo Bizzocchi


Um poliglota, alguém que sabe falar línguas, costuma ser alvo de admiração, pois, para muitos, dominar a própria língua já parece um desafio; dominar mais de uma, nem se fala!

No entanto, aprender um idioma é das tarefas que exigem menos Q.I. (quociente intelectual), tanto que todo mundo aprende a falar. O aprendizado de duas ou mais línguas é ainda mais fácil quando se dá na infância: uma criança que aprende dois idiomas terá ambos como maternos e, por consequência, será fluente em ambos.

Isso é mais comum em sociedades que falam mais de uma língua. Muitos países têm mais de uma língua oficial ou têm língua oficial que convive com línguas regionais e dialetos. Na Suíça e na Espanha há quatro oficiais, mais um sem-número de dialetos. A Índia é célebre pela profusão (mais de 400, das quais 23 oficiais).

Em todos esses casos, há uma situação de plurilinguismo, cujo tipo mais comum é o da sociedade que fala duas línguas. Nesse caso, trata-se de bilinguismo ou diglossia.

Alguns autores fazem distinção entre bilinguismo e diglossia, enquanto outros usam os termos como sinônimos. Para quem faz distinção, o bilinguismo é a convivência, numa comunidade, de duas línguas de igual status, ao passo que a diglossia pressupõe que uma tenha status superior ao da outra (um idioma oficial e um dialeto, por exemplo).

Em princípio, todo grupo humano tem sua própria língua. Mas contatos entre grupos desde cedo obrigaram um deles a aprender a língua do outro para que fosse possível a intercomunicação. Quando esse contato é permanente, como quando um povo ocupa um território já habitado por outro, um dos dois povos - às vezes, ambos - deve adotar a língua do outro, embora em geral não renuncie a falar a própria língua.

Distinção
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As línguas em convívio são chamadas de adstrato. Quando uma é suplantada pela outra em importância, chegando a desaparecer, torna-se língua de substrato. Nossos indígenas conviveram com o português no período colonial. Na época, o português e a língua geral eram adstratos, tendo cada um seu lugar de uso: os bandeirantes usavam a língua geral com os nativos e o português com os membros da Coroa. Quando, por obra do Marquês de Pombal, o português foi tornado idioma oficial do ensino, o dialeto indígena passou a ser substrato do português, deixando marcas em nossos léxico e pronúncia.

Mais tarde, a chegada ao país dos imigrantes europeus e asiáticos fez com que, nas regiões onde eles se estabeleceram, o português apresentasse influências fonéticas e lexicais dos imigrantes. A língua que chegou depois não suplantou a que existia, mas o contrário (os imigrantes é que adotaram o português). Como não falavam bem, natural que se exprimissem misturando ao português sons e palavras de sua língua. Hoje, mesmo quem não descende de imigrantes mas vive em regiões que receberam ondas de imigração, traz resquícios da língua dos colonos. Dizemos que os idiomas dos colonos formam um superstrato linguístico ao português do Brasil.

Mas a situação de bilinguismo pode perdurar séculos numa região. Muitos países bilíngues, como Bélgica e Canadá, não dão mostra de que tendam a abandonar uma das línguas em prol da outra. É que a própria identidade nacional deles se construiu sobre a base da identidade étnica e cultural dos povos que os formaram. Assim, manter viva a sua língua mesmo dominando a do outro alimenta um sentimento de pertencimento, familiaridade e orgulho. Nesses países, a população conhece as duas línguas, mas cada parcela tem só uma nativa - a outra é de intercomunicação. Muitos em que há poliglossia só têm língua oficial; as demais são dialetos, como o cantonês em relação ao mandarim, na China.

Na maioria dos casos, o idioma oficial é o da classe dominante (por exemplo, o colonizador europeu no caso dos países africanos); as línguas nativas, por terem seu uso restrito ao ambiente doméstico e às classes mais baixas da população, são estritamente orais, não produzindo literatura nem comunicação de massa (livros, jornais, rádio, TV, internet). Mas há línguas de cultura - como o occitano, no sul da França, que produziu importante literatura na Idade Média e ainda tem expressão escrita - que nem por isso são reconhecidas como oficiais em seus países.

Poliglotas
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Para o gramático Evanildo Bechara, temos de ser poliglotas na própria língua. Quis dizer que devemos dominar os vários registros linguísticos (formal, semiformal, informal, popular) para nos comunicar de maneira eficiente em cada lugar e situação. Há uma "língua" portuguesa mais adequada para proferir um discurso, bater papo, e assim por diante. Assim, dominar o português é conhecer as "línguas" da língua e saber usá-las com propriedade, na hora e com a pessoa certa.

Apesar disso, todas essas "línguas" existentes no português (os registros linguísticos, ou níveis de linguagem) nada mais são do que diferentes usos do próprio português. Mas, em muitos países, situações diferentes de comunicação exigem idiomas distintos. Na Índia, usa-se o inglês para tratar de temas formais e falar com autoridades, ao passo que as línguas nativas são reservadas a temas domésticos. No Paraguai, o espanhol é a língua das ruas e o guarani, do lar. O mesmo vale para o inglês e o gaélico na Irlanda.

Koiné
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Toda língua oficial é koiné, uma mistura de dialetos. Um (em geral, o da classe dominante) serve de base para a constituição do idioma, mas os outros contribuem principalmente com palavras e expressões. Essa é uma das causas da irregularidade fonética de alguns vocábulos.

O português se constituiu como idioma oficial de Portugal e dos demais países lusófonos a partir do dialeto falado em Lisboa. Mas o dialeto foi enriquecido com palavras dos falares do norte e do sul de Portugal. Por isso, embora o grupo pl no início das palavras latinas tenha evoluído no português para ch (lat. plattu, planu > port. chato, chão), há palavras, como "prazer" (do latim placere), que apresentam pr no lugar de ch. É que provêm de outros dialetos ibéricos, nos quais a evolução fonética seguiu outros rumos.

Exemplo clássico de koiné é o alemão moderno, criado por Lutero no século 16 para a tradução da Bíblia. Tendo por base o dialeto bávaro, então já bastante difundido, Lutero adotou palavras de outras regiões da Alemanha para que todos entendessem o texto bíblico, não importa qual fosse o seu dialeto nativo.

Aldo Bizzocchi é doutor em linguística pela USP, autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume)

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