Andava distraído o nosso Raimundo de Lau. Flutuava no mundo da lua.
Com a cara virada para o céu, andando ao leu.
Apaixonado pelos olhos verdes de Carolina.
Filha da família Peixoto do Exu, bravos feito inxu magro; inflamáveis como gasolina.
Destrutivos feitos uma carnificina, mais fatais que estricnina, mais explosivos que nitroglicerina, tão velozes quanto a lâmina da guilhotina, mais traiçoeiros que Messalina.
Não tem remédio que dê resultado para o amor de Raimundo por Carolina: acetilcolina, adrenalina. atropina, benzocaína, bradicinina, cafeína, codeína, digitalina, efedrina, fenacetina, hioscina, lecitina, pilocarpina, tuberculina, vacina ou zibelina.
Não existe corajoso para roubar aquela moça.
A começar pelo pretendente.
Raimundo de Lau estava cada vez mais macambúzio. Nem chá de macambira, chapéu de couro ou quebra pedra rebentava o tumor da tristeza do amante errante.
Por isto foram chamar João de Barros, o maior aventureiro que a região já teve notícia.
Mas ele não gostou da idéia:
- Eu? Tu tá doido macho, enfrentá aqueles cascavé de lajedo, nem nim son-io.
Ofereceram um dinheirão em escala crescente para ele que foi refugando, até chegar um montante muito elevado. Chegaram a valor tão alto, porque achavam o rapaz incapaz de cumprir o fato, apesar de sua fama. Por outro lado, com aquele valor o cowboy não teria como recusar mesmo com o mais legítimo instinto de sobrevivência.
-Tá beim, eu intrego Carolina prá Reimundo de Lau, mas quero um bocado do din-eiro agorin-a mermo.
Deram só uma parte pequena e entregaram o restante na mão do honrado Vicente Manoel de Souza Braga. Não iriam se arriscar com aquela missão quase impossível, era muito dinheiro para entregar para João sem o compromisso acabado. Mesmo assim, todos queriam ajudar Raimundo de Lau e contavam com a cobiça do dinheiro por receber, como forma de estimular o maluco. Com as artimanhas do aventureiro, ele seria capaz de, ao menos, aparecer no terreiro dos Peixoto.
João saiu perguntando, com quem encontrava, sobre a vida dos Peixoto. Do que gostavam, do que detestavam, do que tinham respeito, como dormiam, o que comiam, quem eram seus amigos e quais os inimigos. Passou o resto da tarde e da noite pesquisando sobre a vida da família. Agora já tinha informação sobre o outro lado.
Poderia começar a maquinar suas façanhas para vencer a grande barreira que o separava da enorme quantia de dinheiro que estava nas mãos de seu Mané Braga.
A casa foi construída a três metros do chão e em torno existem escadas de acesso aos jardins. Tem cinco portas de saída e onze janelas de pau d’arco de vinte centímetros de espessura. Por dentro possuem ferrolhos e tramelas de pau maciço.
Senta-se na cadeira de balanço no alto da calçada da frente da casa, aproveitando a brisa fresca da manhã. Corta fumo na palma da mão e, na boca, segura a palha de milho que enrolará o cigarro.
Tá pensativo, uma amargura silenciosa cozinha no meio do coração. Tão querendo levar para longe a querida Carolina, a filha que havia guardado para cuidar-lhe da velhice.
Enrola o cigarro e com uma embira de palha de milho, o amarra. Passa saliva ao longo do cigarro, morde a ponta chupando com a boca desdentada com se fosse um bebê no mamilo da mãe e, tirando gosto, mete a mão no bisaco.
Puxa de dentro a pedra de fogo, o pedaço de ferro e o chifre carregado de algodão. De cara enfezada, segura o chifre pelos dedos mínimo e médio um ponto abaixo da pedra presa pelos dedos indicador e polegar. Em seguida bate o ferro da mão direita, com maestria, nas extremidades laterais da pedra da qual saltam faiscas. Elas começam a queimar o algodão na tabaqueira.
Encosta o cigarro, a fumaça levanta e ele dá uma tragada profunda. Solta a fumaça do peito e com um olhar bambo como se tivesse preguiça, assunta o tempo.
Dali tem o controle de todas as suas terras, nenhum detalhe lhe escapa: o urubu no fundo azul do céu, o bentivi atacando o gavião, a cobra engolindo o sapo, os marrecos voando em bando e a rolinha abatida pela espingarda soca-soca de Zé Amâncio, lá na várzea distante.
Tem o controle de vida e pedra, de fogo e água, nada lhe assusta.
Ô pulo grande da peste!
De uma coisa, seu Peixoto não gostava nesta vida e era de cobra.
A jararaca de meio metro se armou para o bote.
O velho Peixoto nunca vira bote de cobra, não havia tempo para tal. Bastava haver uma cobra num raio próximo e ele já a pressentia, era o suficiente para já sair rapidinho. Rapidinho é o modo de dizer, porque na verdade ele era mais rápido que a pronúncia da palavra já!
E estava longe.
Era o dia de juízo final, outra cobra, desta vez era uma chocalhante cascavel que caía atrás das suas costas.
Pulou de banda aumentando o grito.
Mas não teve tempo para mais outro grito, uma cobra preta, destas gosmentas, caía com seu corpo gelado, no pescoço do coitado.
Aí não teve jeito, o velho, sem saber como, deu um salto que cobriu toda a escadaria. Caiu no jardim, no único lado que pensava estar livre de cobras.
Quando eu digo caiu, também não pára por aí. Sem catar as chinelas currulepes que se soltara dos pés, nem dando tempo de se livrar das topadas, o seu Peixoto queimou os pneus da sola dos pés na maior aceleração que tive notícia até hoje.
Parecia um avião tomando rumo para voar.
Eita velho para ter disposição.
Sumiu.
Num instantinho ele desapareceu de porteira a fora, sem saber como conseguia a façanha de abrir cadeados num piscar d’olhos.
Quando a filha chegou à calçada só encontrou as três cobras assustadas que procuravam se esconder daquela confusão toda. As cobras rastejando e o pai correndo a mais de mil.
A cena quase lhe faz rir da situação, mas logo ouviu uma voz:
Carolina olhou para os lados, não viu Sá Santana. O pai se afastava veloz.
Suspirou, agarrou a mão do rapaz e correu na direção da porteira. Entraram num algodoal a tempo de ver o Velho Peixoto, ainda arregaçando as pernas da calça, correndo no rumo da várzea onde estava Zé Amâncio.
Os dois foram na direção contrária e meia légua depois, por trás de um serrote, pegaram duas montarias e rumaram na direção da baixa Dantas ao encontro do pretendente.
Homem, o velho Peixoto chegou mais rápido que todos os avisos.
Literalmente passou por cima do caçador, que rolou na beirada da poça d’água e afundou na lama. Quem visse Zé de longe, parecia uma cena da segunda guerra mundial: um submarino japonês procurando americano, cujo periscópio era a espingarda enfiada ao seu lado, no fundo lamacento da poça.
- O que é isto seu Peixoto? - Zé gritou assustado com o inesperado que o atingira.
- Num é nada seu fio duma égua! Eu só tô fazendo uns exercícios que o médico mandou eu fazer. - O velho Peixoto respondeu ao dar fé do ridículo que fazia, mais de meia légua da sua casa, correndo como uma burra com medo de carga.
Voltou dizendo todos os palavrões que conhecia desde que nascera há 70 anos atrás. E olhe que em matéria de palavrão ele aprendeu foi muito. Mas a lista não foi suficiente para o que ele tirou de um canto escondido ao descobrir o rapto da filha.
Ô desgosto medonho, pois o pior é que não podia contar para ninguém como é que havia acontecido.
A bem da verdade a repetição desta história nem faria bem para a imagem do velho Peixoto e nem era boa de se recordar.
- Se os Peixoto suberim que foi eu, vô dizê de queim foi o din-eiro e queim mim pagô.
Com a cara virada para o céu, andando ao leu.
Apaixonado pelos olhos verdes de Carolina.
Filha da família Peixoto do Exu, bravos feito inxu magro; inflamáveis como gasolina.
Destrutivos feitos uma carnificina, mais fatais que estricnina, mais explosivos que nitroglicerina, tão velozes quanto a lâmina da guilhotina, mais traiçoeiros que Messalina.
Não tem remédio que dê resultado para o amor de Raimundo por Carolina: acetilcolina, adrenalina. atropina, benzocaína, bradicinina, cafeína, codeína, digitalina, efedrina, fenacetina, hioscina, lecitina, pilocarpina, tuberculina, vacina ou zibelina.
Não existe corajoso para roubar aquela moça.
A começar pelo pretendente.
Raimundo de Lau estava cada vez mais macambúzio. Nem chá de macambira, chapéu de couro ou quebra pedra rebentava o tumor da tristeza do amante errante.
Por isto foram chamar João de Barros, o maior aventureiro que a região já teve notícia.
Mas ele não gostou da idéia:
- Eu? Tu tá doido macho, enfrentá aqueles cascavé de lajedo, nem nim son-io.
Ofereceram um dinheirão em escala crescente para ele que foi refugando, até chegar um montante muito elevado. Chegaram a valor tão alto, porque achavam o rapaz incapaz de cumprir o fato, apesar de sua fama. Por outro lado, com aquele valor o cowboy não teria como recusar mesmo com o mais legítimo instinto de sobrevivência.
-Tá beim, eu intrego Carolina prá Reimundo de Lau, mas quero um bocado do din-eiro agorin-a mermo.
Deram só uma parte pequena e entregaram o restante na mão do honrado Vicente Manoel de Souza Braga. Não iriam se arriscar com aquela missão quase impossível, era muito dinheiro para entregar para João sem o compromisso acabado. Mesmo assim, todos queriam ajudar Raimundo de Lau e contavam com a cobiça do dinheiro por receber, como forma de estimular o maluco. Com as artimanhas do aventureiro, ele seria capaz de, ao menos, aparecer no terreiro dos Peixoto.
João saiu perguntando, com quem encontrava, sobre a vida dos Peixoto. Do que gostavam, do que detestavam, do que tinham respeito, como dormiam, o que comiam, quem eram seus amigos e quais os inimigos. Passou o resto da tarde e da noite pesquisando sobre a vida da família. Agora já tinha informação sobre o outro lado.
Poderia começar a maquinar suas façanhas para vencer a grande barreira que o separava da enorme quantia de dinheiro que estava nas mãos de seu Mané Braga.
1) A Fortaleza Inimiga -
A casa dos Peixoto é guarnecida inteiramente com uma cerca viva de avelós e só existem duas porteiras de acesso, sempre fechadas por cadeados. Um jardim fica em volta da casa, que é totalmente cerrado com um muro alto, com dois portões de madeira fornida e bem fechados.A casa foi construída a três metros do chão e em torno existem escadas de acesso aos jardins. Tem cinco portas de saída e onze janelas de pau d’arco de vinte centímetros de espessura. Por dentro possuem ferrolhos e tramelas de pau maciço.
2) O personagem central -
Um velho austero, carrancudo, enfezado, ganjento, infenso, labrego, nefário, pioca, rosnador, turrão, valente, zoilo e dado a ter lundu. É a descrição exata do velho Peixoto.Senta-se na cadeira de balanço no alto da calçada da frente da casa, aproveitando a brisa fresca da manhã. Corta fumo na palma da mão e, na boca, segura a palha de milho que enrolará o cigarro.
Tá pensativo, uma amargura silenciosa cozinha no meio do coração. Tão querendo levar para longe a querida Carolina, a filha que havia guardado para cuidar-lhe da velhice.
3) Cenas iniciais-
A filha está na lida caseira e os outros filhos foram para a roça. Na casa só dona Santana, o velho Peixoto e Carolina.Enrola o cigarro e com uma embira de palha de milho, o amarra. Passa saliva ao longo do cigarro, morde a ponta chupando com a boca desdentada com se fosse um bebê no mamilo da mãe e, tirando gosto, mete a mão no bisaco.
Puxa de dentro a pedra de fogo, o pedaço de ferro e o chifre carregado de algodão. De cara enfezada, segura o chifre pelos dedos mínimo e médio um ponto abaixo da pedra presa pelos dedos indicador e polegar. Em seguida bate o ferro da mão direita, com maestria, nas extremidades laterais da pedra da qual saltam faiscas. Elas começam a queimar o algodão na tabaqueira.
Encosta o cigarro, a fumaça levanta e ele dá uma tragada profunda. Solta a fumaça do peito e com um olhar bambo como se tivesse preguiça, assunta o tempo.
4) Controle da situação -
No alto da calçada avista toda a paisagem em volta.Dali tem o controle de todas as suas terras, nenhum detalhe lhe escapa: o urubu no fundo azul do céu, o bentivi atacando o gavião, a cobra engolindo o sapo, os marrecos voando em bando e a rolinha abatida pela espingarda soca-soca de Zé Amâncio, lá na várzea distante.
Tem o controle de vida e pedra, de fogo e água, nada lhe assusta.
5) O que é que é isso, minha gente?
De repente um baque mole nos seus pés. Um som de carne no chão, uma matéria viva que se desenrola, se enroscando nas pernas do velho Peixoto. Presas de agulhas finas, pingando veneno.Ô pulo grande da peste!
De uma coisa, seu Peixoto não gostava nesta vida e era de cobra.
A jararaca de meio metro se armou para o bote.
O velho Peixoto nunca vira bote de cobra, não havia tempo para tal. Bastava haver uma cobra num raio próximo e ele já a pressentia, era o suficiente para já sair rapidinho. Rapidinho é o modo de dizer, porque na verdade ele era mais rápido que a pronúncia da palavra já!
E estava longe.
6) E não pára não!
Deu um pulo para trás e berrou pela filha.Era o dia de juízo final, outra cobra, desta vez era uma chocalhante cascavel que caía atrás das suas costas.
Pulou de banda aumentando o grito.
Mas não teve tempo para mais outro grito, uma cobra preta, destas gosmentas, caía com seu corpo gelado, no pescoço do coitado.
Aí não teve jeito, o velho, sem saber como, deu um salto que cobriu toda a escadaria. Caiu no jardim, no único lado que pensava estar livre de cobras.
Quando eu digo caiu, também não pára por aí. Sem catar as chinelas currulepes que se soltara dos pés, nem dando tempo de se livrar das topadas, o seu Peixoto queimou os pneus da sola dos pés na maior aceleração que tive notícia até hoje.
Parecia um avião tomando rumo para voar.
7) Um bólide acelerado -
A aceleração era tal que chegou a levantar poeira. E o coitado, ainda de pijamas, arregaçando as pernas da calça para se livrar de supostas cobras, saiu atropelando roseiral, pés de margarida, cravos e moita de jasmineiro. Não respeitou nem a horta de alfaces e os pés de coentro. Saiu por lá, esmagando tomates na sua tropelaria pelo mato adentro.Eita velho para ter disposição.
Sumiu.
Num instantinho ele desapareceu de porteira a fora, sem saber como conseguia a façanha de abrir cadeados num piscar d’olhos.
Quando a filha chegou à calçada só encontrou as três cobras assustadas que procuravam se esconder daquela confusão toda. As cobras rastejando e o pai correndo a mais de mil.
A cena quase lhe faz rir da situação, mas logo ouviu uma voz:
8) O rapto da sabina -
- Ramo! Reimundo mandô eu vim ti buscá. Ligêro! Ramo!Carolina olhou para os lados, não viu Sá Santana. O pai se afastava veloz.
Suspirou, agarrou a mão do rapaz e correu na direção da porteira. Entraram num algodoal a tempo de ver o Velho Peixoto, ainda arregaçando as pernas da calça, correndo no rumo da várzea onde estava Zé Amâncio.
Os dois foram na direção contrária e meia légua depois, por trás de um serrote, pegaram duas montarias e rumaram na direção da baixa Dantas ao encontro do pretendente.
9) Estava no alvo, mas a mão do cão desviou -
Zé Amâncio se concentra na rolinha que pousa no galho seco da espera, fecha um olho e acerta, atentamente, com a respiração presa, a sua pontaria.Homem, o velho Peixoto chegou mais rápido que todos os avisos.
Literalmente passou por cima do caçador, que rolou na beirada da poça d’água e afundou na lama. Quem visse Zé de longe, parecia uma cena da segunda guerra mundial: um submarino japonês procurando americano, cujo periscópio era a espingarda enfiada ao seu lado, no fundo lamacento da poça.
- O que é isto seu Peixoto? - Zé gritou assustado com o inesperado que o atingira.
- Num é nada seu fio duma égua! Eu só tô fazendo uns exercícios que o médico mandou eu fazer. - O velho Peixoto respondeu ao dar fé do ridículo que fazia, mais de meia légua da sua casa, correndo como uma burra com medo de carga.
Voltou dizendo todos os palavrões que conhecia desde que nascera há 70 anos atrás. E olhe que em matéria de palavrão ele aprendeu foi muito. Mas a lista não foi suficiente para o que ele tirou de um canto escondido ao descobrir o rapto da filha.
Ô desgosto medonho, pois o pior é que não podia contar para ninguém como é que havia acontecido.
A bem da verdade a repetição desta história nem faria bem para a imagem do velho Peixoto e nem era boa de se recordar.
10) A recompensa.
Bom, quanto ao dinheiro que estava nas mãos de seu Manoel de Souza Braga, não é necessário dizer que João de Barros embolsou todinho e foi logo avisando:- Se os Peixoto suberim que foi eu, vô dizê de queim foi o din-eiro e queim mim pagô.
3 comentários:
Do Vale,
Você é incrível !
A cada texto se supera.
Não sei por onde começar os comentários...
Nome de remédios é a perder de vista...
A quantidade de cobras dá para assustar qualquer medroso pela espécie......
Nunca vi tanto predicado de zanga em um mortal só...
A descrição do ritual do fumo, eita coisa boa danada!
Gostei do decolar do avião...
Deus me livre da casa do velho Peixoto com seus palavrões e suas cobras !
Sem mais palavras,DO Vale !
Eita, Zé!!!
Me danei de tanto rir com os termos de nossa gente. Se a gente acompanhar direitinho dá pra sentir todo o clima e até o cheiro do nosso povo.
Valeu !
Abraço,
Claude
Só posso imaginar esse texto encenado num palco... Aí eu queria ver se atores e Diretor passariam a comédia tal qual o escritor criou, e essas suas leitoras ( incluindo-me) se deliciaram.
Você é também do teatro e do cinema.
Penso em Paracuru... Quero esse filme !
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