Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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sábado, 14 de agosto de 2010

O quarto segredo de Fátima

Florípio sabia-se retrô, meio ultrapassado: como um urinol, uma espingarda soca-soca, um tabaqueiro. Mas que jeito ? Até que tentou se atualizar um pouco, mas desistiu. Homem agora é um tal de emo ou de homo; moça é apenas um tipo de leite condensado; veado é promoter! Desisto, tô fora, não dá prá mim ! Solteirão convicto, colecionava uma dezena de namoradas, escolhidas a dedo, pela variedade e não pela beleza ou pelo dinheiro. Caixeiro viajante aposentado, Florípio desenvolvera uma lábia de derrubar Boing 747. Língua de veludo, arrodeava a pretendida com técnicas de um mestre-salas, cobria-a de mimos, enviava flores e torpedos; sabia como poucos lamber a alma feminina e deixá-la em ponto de degustação. Daí, certamente, terá vindo sua fama de limpa-trilho, de tsunami, de terra-de-cemitério. Ultimamente , mais escondido do que puta de cardeal, envolvera-se com a esposa de um militar aposentado. Chamava-se Fátima. Esbarrara com ela em um supermercado e, enquanto perguntava sobre a seção de floricultura, ela pareceu interessada diante daquele romantismo obsoleto . Conversa vai, conversa vem e rolou um clima entre uma e outra bromélia. Florípio percebeu que enveredava por um esporte radical: o marido era brabo como um gato acuado e não aparentava ter cabeça apropriada para adornar-se de chifres. Mas clima é clima e o risco mostrou-se uma adrenalina a mais na relação. Nosso D. Juan nem atinou na proximidade ortográfica entre sêmen e sangue. E, com tanta boca de maçarico existente neste mundo de meu Deus, qual é o segredo que se agüenta incólume? Nem o de Fátima!
Há alguns dias o Cel Mascarenhas, o sócio de Florípio, marcou viagem para capital. Até hoje não se sabe bem se já desconfiava de alguma coisa e armou o alçapão ou se o flagra teria sido mero acaso. O certo é que nosso Caixeiro viajante estava à noite, deitado na cama com a namorada, de frozô, quando ouviu , apavorado, fortes pancadas na porta. A mulher, atarantada, percebeu, claramente, que a voz era nada mais, nada menos que a do marido. Nem teve tempo de avisar do perigo. A casa , de sobrado, não tinha muitas rotas de fuga e o quarto era no primeiro andar. E medo é bicho diminuidor de distâncias e encurtador de alturas. Florípio pensou com as pernas. Nu, pegou as roupas e os sapatos e saltou pela janela, sem contar conversa. D. Fátima maquiou, rapidamente, a cena do crime, antes de abrir a porta para o marido desconfiado que invadiu a casa procurando por uma caça possível, como um cão perdigueiro.
Por sua vez, Florípio, ao bater no chão, pareceu um jacu baleado, saiu numa na carreira desabalada, como se sentisse o bafo de Mascarenhas no cangote. Era noite alta e, para sua felicidade, as ruas estavam vazias. Quando dobrou a primeira esquina, no entanto, notou que a sorte o havia abandonado. Entrou justamente no meio da Procissão de Senhor Morto. Cidade escura, ainda sem energia, apenas as velas, nas mãos das beatas, emitiam uma luz fosca e bruxuleante.Florípio meteu-se no meio da turba e que jeito ? Fingiu-se de fiel, baixou a cabeça e saiu andando lentamente, balbuciando aquilo que se podia imaginar fosse uma oração. Passados alguns instantes, um velho que andava a seu lado, acompanhando o séquito, percebeu, por fim, a nudez do romeiro. Estupefato, perguntou que diabos era aquilo. Florípio, então, usando artes da profissão , desdobrou: estava pagando uma promessa. Disse que prometera aquela penitência, em caso de ter seu pleito atendido. O velho engoliu a explicação meio a contragosto, como se tratasse de farinha de mucunã. Mais alguns passos e, percebendo várias marcas vermelhas no peito e no rosto , parecendo baton, o velho continuou o inquérito: que diabos de vermelhão pelo corpo é esse, meu senhor? Florípio, então, falou que era penitente e que antes de vir à procissão, havia passado por um ritual de auto-flagelamento. O velho engoliu este outro bocado, a seco, com cara de quem vai se entalar. Confuso, fitou a nudez do vizinho , mais uma vez, e interrogou:
---- Meu amigo, se mal pergunto, que diabos de graça importante foi essa que você alcançou ?
Florípio, sem entregar os pontos, respondeu:
--- Meu amigo, vi nesses dias, o alagamento daquelas cidades de Pernambuco pelo rio Una. O povo passando fome, sem casa, sem roupa, no meio da chuva. Até os cachorros, carneiros, gatos, no meio da rua, sofrendo. Peguei-me então com São Expedito, aquele das causas impossíveis e de repente as coisas começaram a se resolver, graças a Deus. Tô aqui para pagar a minha promessa.
O velho, fitou Florípio de cima abaixo e fechou questão:
--- É verdade, camarada. O santo é milagroso. O povo todo já tá de casa nova e comida farta. Os animais abrigados. Tô vendo que até o seu pinto, depois do alagamento, já ganhou uma camisinha...

J. Flávio Vieira

3 comentários:

socorro moreira disse...

MARAVILHA!!!!
Começamos bem , o dia 14 de AGOSTO!

Abraços.

jflavio disse...

Uma potoca para clarear um pouco a escuridãod os últimod dias.
Abraço

Edilma disse...

Dr. José,

Se chama isso de potoca, gostaria mesmo era de um livro inteiro recheiado delas.
Estou mesmo precisando de umas boas risadas...
Obrigada, amigo.

Abraço!