“Somos inquilinos do tempo e do espaço, mas somos filhos do infinito.”
Benjamin González-Buelta sj
Querida amiga Elza,
Você se queixava de que eu não respondia seus e-mails. Agora lhe respondo. Não vou lhe pedir desculpas por estar chegando atrasado, pois acredito que Deus conta o tempo diferente da gente. Espero que no tempo dEle eu esteja chegando na hora certa... Procure uma lan house aí no céu. Ou então bata na porta de São Gabriel, o arcanjo mensageiro. Ele, com certeza, ajudará você a abrir esta mensagem.
Quando eu era menino, gostava de ficar observando as formigas. Passava horas a fio contemplando aquele mundo pequenino delas. Seu trabalho rotineiro, a labuta de cortar as folhas e levar para o formigueiro. Eu ficava olhando as formiguinhas, carregando folhas às vezes bem mais pesadas que elas próprias. Eu ficava observando o caminho que faziam, perfiladas, numa disciplina e ordem impressionantes. Um dia, experimentei passar o dedo, cortando o caminho delas. Aí observei como ficavam desorientadas, perdidas, sem saber que direção tomar.
Foi esta, Elza, a primeira imagem que me ocorreu na manhã daquela sexta-feira, 27 de agosto. Seus filhos iam chegando, um após o outro, ao hospital, no Recife. Desconsolados, abraçavam-se, calados, atordoados. Formiguinhas assustadas é o que somos, quando a morte nos visita. O caminho que fazemos, carregando nossas folhas imensas, de repente é interrompido. E nos sentimos sós. Perdidos, por mais conscientes e racionais que sejamos. Por mais que o sol brilhasse naquela manhã de agosto, às margens do Capibaribe, no coração dos seus filhos tudo era neblina e cerração. Na Ilha do Leite, berravam em silêncio os bezerros desmamados do sítio São José...
Naquela mesma sexta-feira à tardinha, já em outro cenário, mas na mesma saudade e na mesma dor, eu também me sentia só. Logo depois do pôr-do-sol, fui ao quintal da casa do sítio São José para falar com minha mãe pelo celular. Sentia saudade dela. Tinha um nó na minha garganta, porque você também não estava lá. Havia um buraco enorme naquela casa, sem a dona dela, com suas delicadezas, beijus com nata e doce de buriti. Enquanto falava com minha mãe ao telefone, olhei para o céu e vi uma estrela grande e brilhante. Logo a reconheci: era a estrela que eu adorava ficar olhando, na imensidão do sertão da minha infância. Aquela estrela sempre me lembrou a minha mãe, e naquele momento eu estava falando de você com ela. Eu nunca mais tinha reparado na beleza daquela estrela... A gente corre demais, Elza, a gente tem muita reunião!!!... Como Santa Marta do Evangelho, vivemos atarefados e com pressa, enredados em nossa agenda sem tempo para contemplações. E naquele momento, a estrela que brilhava no firmamento, me parecia bem maior, mais bela e mais fulgurante do que de costume. A saudade faz a gente ver as coisas de um jeito assim transfigurado. O amor, o bem querer, nos dá olhos parecidos com os de Deus.
Meu coração, então, se perguntou: será que Elza já chegou no céu? Achei que a viagem fosse mais comprida... No mesmo instante me lembrei que o tempo de Deus se conta de um jeito diferente. Você vinha viajando pela estrada, de volta ao São José para as últimas despedidas. E ao mesmo tempo aterrissava na pista do aeroporto azul do céu, direto no colo de Deus Nosso Senhor. Aquela estrela era sim, Elza, você brilhando no céu do Cariri.
Lembro-me de que uma vez você me perguntou: será que quando eu morrer eu vou para o céu? Eu disse: “Elza, com tanta reza, tanta missa, tanta confissão, tanta ajuda aos pobres, você ainda duvida?... Você é uma pessoa generosa, não tenha medo não, que você vai para o céu”. Aí você dizia, com aquele jeito bem seu: “hum, as pessoas acham que eu sou uma pessoa boa, mas eu vivo dizendo ‘meu povo, eu não sou boa não, deixem de conversa...’”. Desisti de lhe responder esta pergunta, de tentar lhe convencer e que você era uma pessoa boa e que ia sim para o céu. Deixei que Jesus mesmo respondesse.
E ele respondeu. Naquele fim de semana que passei no São José, eu vi a reposta no rosto de tantas pessoas que foram se despedir de você. Pessoas que um dia foram tocadas pela beleza discreta do seu amor, da sua generosidade. Nas palavras que saíam de suas bocas e, mais ainda, no olhar, no silêncio dos seus gestos respeitosos e até reverentes, Jesus estava lhe dizendo: “está vendo, Elza, você é boa sim, descansa agora deste desejo de ir para o céu”. E eu dizendo, com Jesus: “está vendo, Elza, você, como a Irene do poema de Bandeira, é daquelas que não precisam pedir licença para entrar no céu”.
Na tarde daquele sábado, você completou a sua viagem. Deixou o São José e viajou de novo. Desta vez foi para sempre descansar em outro Sítio. Nós, que ficamos aqui deste lado da vida, confiamos que Deus há de enxugar nossas lágrimas, acalmar nosso coração, nossa saudade. Ele saberá nos consolar do vazio imenso que ficou no São José. É Ele quem vai nos ensinar a preencher o vazio que ficou naquele pedaço do mundo, entre o Crato e o Juazeiro, depois da sua partida. Ele saberá guiar os passos de cada um dos seus filhos, pelos caminhos que você e seu querido Geraldo lhes ensinaram. Deus, que aos seus nunca abandona, vai dar a eles a sabedoria que nasce da fé, para retomarem, cada um a seu tempo e do seu jeito, aquele caminho que começou no São José e só terminará na plenitude do abraço de Deus.
Você já deve ter encontrado aí no céu o Pe. Arnaldo. Mostre a ele este e-mail. Acho que ele vai gostar de saber que eu, embarcado depois dele no grupo dos Companheiros de Jesus, tive o privilégio de, como ele, ter você como amiga e conviver com esta família tão especial.
Um grande abraço, Elza! E muito obrigado, mais uma vez, por me fazer viver naquele fim de semana, no sítio São José, uma experiência intensa e verdadeira da graça e do amor de Deus, quando você se despedia dos seus, deixando atrás de si um rastro tão bonito de paz, comunhão e harmonia.
Pe. Miguel Martins Filho SJ
Recife, 25.09.2010
2 comentários:
Socorro,
Uma homenagem mais do que merecida à D. Elza, realmente ela conquistou seu lugar por justo merecimento.
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