Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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sábado, 8 de janeiro de 2011

Sísifo

Entrou em casa , à noite, como se trouxesse no corpo as feridas de uma batalha. Os dias todos pareciam uma xerox de um só . Trabalho repetitivo de tabelião de cartório, imerso no cofre da fina burocracia: escrituras, registros civis e de óbitos, reconhecimento de firmas. Olhava para aquele mundão de livros velhos e sobrenadava-lhe a certeza: ali , no cartório, estava depositada a vida perdida de várias gerações. Prazeres que não foram desfrutados, viagens que deixaram de ser feitas, felicidade enfim que acabou encarcerada em páginas esmaecidas, aguardando a sanha feroz dos inventários.O estranho é que, com o passar do tempo, aquela inutilidade armazenada nas prateleiras empoeiradas começou a inundar um pouco a sua própria existência, como se seu mundo, de alguma maneira, fosse sendo também aprisionado entre carimbos e certidões. O patrão, rígido, já tinha aquela cara esquisita de formato partilha. Até mesmo o descanso do domingo adquirira uma feição cartorial: ou Faustão ou Sílvio Santos. Sentia-se, como tantos dos seus clientes, um pouco órfão, ausente e interdito. Pois foi com aquela cara de arquivo morto que entrou em casa, por volta das 20 horas. Dirigiu-se para a mesa da sala em busca do jantar, já olhando , com o rabo do olho, a rede que o esperava atravessada na varanda. Estranhamente não viu pratos , nem talhares. Súbito, a mulher saiu do quarto e, sorridente, andou em sua direção. Estava maquiada, cabelo esticado às custas de uma escovinha de última hora e vestia um longo , preto, ainda com o cheiro da loja. Pensou, rapidamente, que ela devia estar voltando de alguma festinha da escola do filho. Com a barriga protestando, pediu-lhe que servisse o jantar. A esposa franziu o cenho , não deu palavra e retornou cabisbaixa, apagando os próprios passos . Ele recostou-se na rede e ficou imaginando o que poderia ter ocorrido: alguma fofoca de vizinha, um telefonema anônimo, alguma festa em casas de amigos ou na toca daquela jararaca da sua sogra, que havia esquecido ? Antes que chegasse a alguma conclusão, ouviu uns soluços secos que ressoavam a partir das paredes do quarto. Correu para lá e deu com a esposa aos prantos, sentada na cama, com a maquiagem já toda borrada. Que diabos estava acontecendo ? Achegou-se e perguntou, carinhosamente do que se tratava:

--- O que aconteceu ,Terezinha?Você está doente? Está sentindo alguma dor ?Levantaram algum falso contra mim ? Quer que eu lhe ajude a tirar esta roupa de festa ?

Terezinha , muda, apenas chorava convulsivamente e aumentava o tom do pranto, em uma oitava, a cada nova pergunta do marido. Em pouco , a patroa parecia um soprano interpretando uma ópera desconhecida. Ele achou mais sensato parar e voltar à rede da varanda onde tentou , sem êxito, descobrir o enigma. Adormeceu em meio ao cansaço e a fome e sonhou com uma terra em formato de almofada, assolada por uma tempestade de carimbos. Despertou cedinho e retornou para a tarefa de Sífiso. Não adiantava mexer com aquela sensitiva, ressonando ainda com o vestido da véspera na cama. Ao retornar, à noite, encontrou-a ainda trombuda e só , então, descobriu o erro fatal: esquecera seu aniversário de vinte anos de casado. A esposa o aguardara, ontem, para um jantar a luz de velas e algum presentinho que relembrasse a data. Passara batido. Tentou desculpar-se , sabendo de antemão que para tal crime não haveria perdão, não tinha sursis, era inafiançável : estaria condenado ad eternum .
Tentou minar aquele coração pétreo com afagos, com uma posição diferente na cama, com um almoço arrumado de última hora e um perfume francês. Mas tudo parecia exatamente o que era : uma tentativa vã de corrigir um erro imperdoável. Usou então o argumento derradeiro , deslocou-se até uma floricultura e encomendou um bouquê de rosas vermelhas , aquelas que trazem o cor flamejante da paixão . Junto anexou um cartãozinho dourado , com dois pombinhos ,aos beijos em um dos cantos, e sapecou a cantada em letra bonita, com seu linguajar de tabelião:

“ Para Terezinha,
Meu maior bem móvel.
Amo-te
O referido é verdade.
Dou Fé .
Osvaldo"

Depois das flores o clima melhorou um pouco, as coisas foram voltando para o devido lugar. . Qualquer briguinha , no entanto, qualquer arrufo e lá ressuscita o terrível pecado de omissão :

--- Você não lembra, não ? Até nosso aniversário de casamento você esqueceu ...

Aprendeu, tardiamente, que o coração feminino tem arquivos impecáveis e de facílimo acesso. O detalhismo está profundamente entranhado naquelas almas :Terezinha perdoou , mas não esqueceu. Osvaldo comprou agenda eletrônica, marca as datas importantes no calendário sobre seu bureau, usa até a Internet, temendo uma recorrência fatal no mesmo crime hediondo. Contratou até algumas testemunhas que possam falar a seu favor em casos mais melindrosos. Percebe, porém, que como na vida, nos livros de tombo do sentimento não é possível passar procuração e nem substabelecer.


J. Flávio Vieira

5 comentários:

Claude Bloc disse...

Texto bem estruturado, bem escrito, notório e notável só pode ser de J. Flavio.

Nunca é demais realçar a maravilha que é te ler. Não importa a extensão do texto. A gente o lê com sede e vontade.

Abraço,

Claude

Edilma disse...

Dr. José,

É sempre um grande prazer ler seus textos bem humorados e muito bem escritos com riqueza de detalhes e conhecimento da profissão.
Já trabalhou em cartório, foi Dr ?
KKKKKKK.....
Adorei !

Feliz Ano Novo !

jflavio disse...

Abraços à Claude e à Edilma leitoras tão assíduas dessas potocas semanais. Ótimo 2011 para vocês !

Aloísio disse...

J Flávio

Muito bom ler seu texto, até parece um notário escrevendo.

Abraços
Aloísio

jflavio disse...

Abraço ao Aluizio pela paciência em ler o texto e por ter apreciado as histórias desse notário