Em 1954, a energia elétrica da cidade do Crato era obtida de forma precária, de uma pequena hidrelétrica nas nascentes do Rio Batateiras. A tensão era de 220 volts, mas nunca atingia esse nível, de modo que não podíamos ligar geladeiras e outros motores. Eu estava cursando o primeiro ano do curso primário, no Grupo Escolar Alexandre Arraes, tendo sido aluno da primeira turma que inaugurou aquele estabelecimento de ensino. Certo dia, uma lagartixa caiu dentro da jarra na qual todos os alunos bebiam de sua água. A diretora proibiu que brincássemos no recreio daquele dia, para que não sentíssemos sede, pois não poderíamos beber água. Fui ver o tal pote e a lagartixa, que era enorme, estava nadando com o rabinho para cima. Nos matos do Sítio São José, eu tinha experiência de sobra para lidar com lagartixas. Querendo me exibir, peguei a bichinha pelo rabo e sai ameaçando os demais colegas, numa algazarra total. Orlando da Bicuda gritou: “– Pega a lagartixa, minha gente!” –“Lagartixa!” – Responderam todos, em coro. A esta altura já tinha atirado a lagartixa em alguém. De repente surgiu um precoce compositor com uma musiquinha: – “Lagartixa come gente, oxente, oxente!” – Cantavam todos em uníssono.
A lagartixa tinha ido embora e aquela gritaria só podia ser comigo mesmo. Fiquei fulo de raiva e passei a reagir de modo um tanto quanto atabalhoado, correndo atrás de um e de outro, dando chutes e murros ao vento, xingando e ameaçando brigar. Foi o suficiente para que o apelido me caísse como uma luva. Imediatamente, ganhou as ruas da cidade, como fogo em palha de canavial. Moleques de rua, com quem não tinha a menor intimidade, gritavam pelo meu apelido. Depois surgiram várias pichações nos muros da cidade com o versinho de lagartixa come a gente, oxente, oxente. Sentia-me como um louco acossado pela turba. E reagia e brigava e o apelido crescia na mesma proporção da minha revolta. Por causa disso, duas cabeças foram furadas.
A primeira cabeça a sangrar foi a de Orlando da Bicuda. Era assim chamado, porque seu pai, Cícero Moura Rozendo era apelidado de Cícero Beija Flor. Ele possuía uma mercearia que tinha o nome de Mercearia Beija Flor. Não sei quem veio antes, se o apelido ou a mercearia. Orlando era um dos meus melhores amigos. Sentávamos no mesmo banco da escola. Ele me ensinou o ofício de coroinha na capela do Colégio Santa Tereza e juntos íamos ajudar o padre Gonçalo na Bênção do Santíssimo, todas as noites. Mas não premeditei furar sua cabeça. Aconteceu de forma espontânea. Foi durante um passeio com os alunos da minha turma e algumas professoras, colegas da nossa, a um sítio no sopé da Serra do Araripe. Estávamos nas margens de uma pequena levada e ele atirava uns pedriscos em mim e dizia: –“Pega essa lagartixa. Reagi mandando uma taboa de caixote que foi certeira em sua cabeça.
A segunda cabeça a rolar foi a de César Alencar, uns três anos depois, já aluno do Colégio Diocesano. Certo dia, durante o recreio, estávamos jogando futebol e uma turma, que não tinha conseguido entrar no time, começou a atirar uns cacos de telhas dentro da quadra. César estava no meio dessa turma. Entrou no campo e aproximando-se de mim, tirou uma dedada dizendo: “– Cai fora, lagartixa!”
Confesso que não tive raiva e para amedrontá-lo, peguei um caco de telha e atirei para o alto, numa direção bem acima de onde César se encontrava. O caco de telha saiu voando e girando em torno de si mesmo, descrevendo uma parábola perfeita. Acontece que César correu na mesma direção. Quando ia se aproximando do final do pátio, cerca de uns sessenta metros de distância, coincidiu que o bólido, que voava em seu percurso predeterminado, ia descendo velozmente, encontrando na linha de sua trajetória a parte posterior da cabeça de César. Houve a queda brusca de seu corpo e ao levantar-se, notei a blusa de sua farda, toda avermelhada. Ao lado dele, o temível diretor, Monsenhor Montenegro a me perguntar: “– Zezinho, você é louco? Na minha terra quem atira pedra é louco!”
Para me livrar do apelido, pedi ao meu pai para acompanhar o meu primo José Esmeraldo Gonçalves, a quem seus pais resolveram mandar estudar no Seminário, mesmo sabendo que daquele estofo não poderia sair nenhum padre.
No seminário, pensava estar livre do apelido e até já me acostumara com o uso da batina em tempo integral. Mas foi somente até a Semana Santa. Todos nós seminaristas deveríamos acompanhar a procissão. Quando o cortejo seguia pela Rua Senador Pompeu, avistei de longe um grupo de ex-colegas e conhecidos, Gérson Moreira liderando a turma, Orlando da Bicuda entre eles, todos amontoados em torno de uma janela alta para poder melhor assistir à passagem da procissão do Senhor Morto. Virei meu rosto para o lado oposto, para que ninguém me visse. Em vão. Quebrando o silêncio, ouviu-se a voz inconfundível de Gerson Moreira gritando: “– Ó lagartixa de batina, minha gente!” –“Lagartixa!” – Gritaram os demais.
Disfarcei firme, sem olhar pra eles, fiz de conta que não era comigo. Rezava para que os demais seminaristas não percebessem que eu era o lagartixa. Ao chegarmos ao seminário, tão logo o padre diretor de disciplina disse “Benedicamus domino”! Cuja resposta que deveria ser: “Deo gratias”, daquela vez foi substituído pelo coro:
“Lagartiiiiiiiiixa!”
Condensado do livro “Histórias que vi, ouvi e contei” de Carlos Eduardo Esmeraldo, Premius Editora, Fortaleza – CE, 2005
A lagartixa tinha ido embora e aquela gritaria só podia ser comigo mesmo. Fiquei fulo de raiva e passei a reagir de modo um tanto quanto atabalhoado, correndo atrás de um e de outro, dando chutes e murros ao vento, xingando e ameaçando brigar. Foi o suficiente para que o apelido me caísse como uma luva. Imediatamente, ganhou as ruas da cidade, como fogo em palha de canavial. Moleques de rua, com quem não tinha a menor intimidade, gritavam pelo meu apelido. Depois surgiram várias pichações nos muros da cidade com o versinho de lagartixa come a gente, oxente, oxente. Sentia-me como um louco acossado pela turba. E reagia e brigava e o apelido crescia na mesma proporção da minha revolta. Por causa disso, duas cabeças foram furadas.
A primeira cabeça a sangrar foi a de Orlando da Bicuda. Era assim chamado, porque seu pai, Cícero Moura Rozendo era apelidado de Cícero Beija Flor. Ele possuía uma mercearia que tinha o nome de Mercearia Beija Flor. Não sei quem veio antes, se o apelido ou a mercearia. Orlando era um dos meus melhores amigos. Sentávamos no mesmo banco da escola. Ele me ensinou o ofício de coroinha na capela do Colégio Santa Tereza e juntos íamos ajudar o padre Gonçalo na Bênção do Santíssimo, todas as noites. Mas não premeditei furar sua cabeça. Aconteceu de forma espontânea. Foi durante um passeio com os alunos da minha turma e algumas professoras, colegas da nossa, a um sítio no sopé da Serra do Araripe. Estávamos nas margens de uma pequena levada e ele atirava uns pedriscos em mim e dizia: –“Pega essa lagartixa. Reagi mandando uma taboa de caixote que foi certeira em sua cabeça.
A segunda cabeça a rolar foi a de César Alencar, uns três anos depois, já aluno do Colégio Diocesano. Certo dia, durante o recreio, estávamos jogando futebol e uma turma, que não tinha conseguido entrar no time, começou a atirar uns cacos de telhas dentro da quadra. César estava no meio dessa turma. Entrou no campo e aproximando-se de mim, tirou uma dedada dizendo: “– Cai fora, lagartixa!”
Confesso que não tive raiva e para amedrontá-lo, peguei um caco de telha e atirei para o alto, numa direção bem acima de onde César se encontrava. O caco de telha saiu voando e girando em torno de si mesmo, descrevendo uma parábola perfeita. Acontece que César correu na mesma direção. Quando ia se aproximando do final do pátio, cerca de uns sessenta metros de distância, coincidiu que o bólido, que voava em seu percurso predeterminado, ia descendo velozmente, encontrando na linha de sua trajetória a parte posterior da cabeça de César. Houve a queda brusca de seu corpo e ao levantar-se, notei a blusa de sua farda, toda avermelhada. Ao lado dele, o temível diretor, Monsenhor Montenegro a me perguntar: “– Zezinho, você é louco? Na minha terra quem atira pedra é louco!”
Para me livrar do apelido, pedi ao meu pai para acompanhar o meu primo José Esmeraldo Gonçalves, a quem seus pais resolveram mandar estudar no Seminário, mesmo sabendo que daquele estofo não poderia sair nenhum padre.
No seminário, pensava estar livre do apelido e até já me acostumara com o uso da batina em tempo integral. Mas foi somente até a Semana Santa. Todos nós seminaristas deveríamos acompanhar a procissão. Quando o cortejo seguia pela Rua Senador Pompeu, avistei de longe um grupo de ex-colegas e conhecidos, Gérson Moreira liderando a turma, Orlando da Bicuda entre eles, todos amontoados em torno de uma janela alta para poder melhor assistir à passagem da procissão do Senhor Morto. Virei meu rosto para o lado oposto, para que ninguém me visse. Em vão. Quebrando o silêncio, ouviu-se a voz inconfundível de Gerson Moreira gritando: “– Ó lagartixa de batina, minha gente!” –“Lagartixa!” – Gritaram os demais.
Disfarcei firme, sem olhar pra eles, fiz de conta que não era comigo. Rezava para que os demais seminaristas não percebessem que eu era o lagartixa. Ao chegarmos ao seminário, tão logo o padre diretor de disciplina disse “Benedicamus domino”! Cuja resposta que deveria ser: “Deo gratias”, daquela vez foi substituído pelo coro:
“Lagartiiiiiiiiixa!”
Condensado do livro “Histórias que vi, ouvi e contei” de Carlos Eduardo Esmeraldo, Premius Editora, Fortaleza – CE, 2005
3 comentários:
Carlos,
Me diverti relendo seu texto.
KKKKKKKKKKKKK...........
Já que estamos bem distantes e não corro o risco de levar uma pedrada na cabeça. Aí vai....
LAGARTIXAAAAAAAAAAAA............
Com respeito, o me abraço!
Num vô mangar de você, sinão tu me atira uma pedra... Vai que o apelido pega de novo!(risos)
Melhor falar CALANGOOOO!
Brincadeirinha...
Abraço,
Claude
É isso mesmo. Nunca vi um apelido colar tão fortemente quanto esse. Uma vez o reitor da URCA, antigo companheiro do seminario, se encontrou comigo e foi logo dizendo: como vai Carlos Lagartixa? Mas fiquem tranquila, hoje bão atiro mais nenhuma pedra ao vento.
Abraços!
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