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Estão paralisados, mas não há desespero,
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"

(Carlos Drummond de Andrade)

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quarta-feira, 22 de julho de 2009

A Crônica Brasileira - Por: Stela Siebra Brito


CLARICE LISPECTOR E A CRÔNICA

Clarice Lispector escreveu crônicas no Jornal do Brasil, de 1967 a 1973, reunidas no livro A descoberta do mundo, publicado pela primeira vez em 1984. Nestes textos Clarice se mostra mais: “nesta coluna, estou de algum modo me dando a conhecer”, comenta na crônica de 21 de setembro de 1968. “Na literatura de livro permaneço anônima e discreta”. Meses antes, em crônica de 22 de junho, “Ser Cronista”, a escritora afirma: “Sei que não sou, mas tenho meditado ligeiramente sobre o assunto” e faz uma série de observações sobre o que é crônica e seu estado de espírito em relação a “ir me tornando pessoal demais”.
Se a crônica é um gênero leve, ameno, de leitura fácil, consegue celebrar o cotidiano e mostrar belezas insuspeitadas, Clarice o fez com sinceridade, sem mudar sua forma de escrever. Na crônica já citada (22 de junho) a autora declara seu desejo de aprofundamento da comunicação na sua escrita consigo e com o leitor e diz estar contente: “agrada-me que ele (o leitor) fique agradado”.
Na crônica de 27 de novembro de 1970, A Antiga Dama, a escritora relata com singularidade e profundidade, mas numa linguagem leve e de fácil leitura, o dia seguinte da visita que uma senhora, moradora de uma pensão, fez à casa do filho, num certo domingo, e onde aí pernoitara e tomara banho na banheira da nora. Neste texto, Clarice trata de um assunto corriqueiro, por isso circunstancial, mas dá-lo um acabamento magistral, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza. De um passeio de uma velha mãe à casa do filho, a autora mostra o retrato de uma mulher que sai do seu dia a dia, e que logo no retorno à pensão está imbuída de uma altivez, de uma certeza de que “a família era a base da sociedade”, para mostrar-se no fim do dia, após vomitar o jantar da casa do filho, antes elogiado como “magnífico”, uma rainha destronada, derrotada.
A marca da escritura de Clarice Lispector está presente, como ela quer, como ela sabe fazer. E assim finaliza a crônica: ”O Rei Lear. Estava quieta, grande, despenteada, limpa. Fora feliz inutilmente”. Eis o texto:

A ANTIGA DAMA
Morava numa pensão da Rua São Clemente. Era volumosa, e cheirava a quando a galinha vem meio crua para a mesa. Tinha cinco dentes e a boca seca, árida.
Sua reputação passada não fora inventada: ainda falava francês com quem tivesse oportunidade, mesmo que a pessoa também falasse português e preferisse não corar com a própria pronúncia. A ausência de saliva tirava-lhe qualquer volubilidade da voz, dava-lhe uma contenção. Havia majestade e soberania naquele grande volume sustentado por pés minúsculos, na potência dos cinco dentes, nos cabelos ralos que, escapando do coque magro, esvoaçavam à menor brisa.
Mas houve a segunda-feira de manhã em que ela, em vez de sair de seu minúsculo quarto, veio da rua. Estava lisa e com o pescoço claro, sem nenhum cheiro de galinha. Disse que passara o domingo na casa do filho, onde pernoitara. Estava de vestido preto de um cetim já fosco. Em vez de ir para o quarto mudar de roupa, vestir um de seus vestidos de algodão barato, e ser apenas uma pessoa sozinha que mora numa pensão, sentou-se na sala de visitas, prolongando o domingo, e disse que a família era a base da sociedade. A propósito de qualquer coisa, referiu-se de passagem a um banho de imersão que tomara na confortável banheira da nora – o que explicava a sua falta de cheiro e o pescoço não encardido. Deixando sem jeito os pensionistas ainda de pijama e robe, ficou sentada horas junto ao jarro da sala, só tendo conversas adequadas a um suposto salão invisível.
De tarde, via-se que os sapatos abotinados já lhe apertavam demais os pés. Continuou, porém, a dama na sala de visitas, levantada a grande cabeça de profeta.
Mas, na hora em que elogiou o jantar magnífico da casa do filho, seus olhos se fecharam de náusea. Depressa foi para o banheiro, ouviram-na vomitar, recusou ajuda quando lhe bateram à porta do quartinho.
Na hora do jantar, apareceu e pediu apenas uma xícara de chá: estava de olheiras marrons, com o largo vestido de estampadinho de ramagem, e de novo sem cinta e soutien. O que ainda restara de estranho era a pele mais clara. Alguns pensionistas evitaram olhá-la e à sua derrota. Não falou com ninguém. O Rei Lear. Estava quieta, grande, despenteada, limpa. Fora feliz inutilmente.


Stela Siebra Brito

3 comentários:

socorro moreira disse...

Stela,
Isso é que é ser bela !
Você arrasa em lucidez e sensibilidade , quando nos apresenta Clarice , tantas vezes em nós anunciada.


Obrigada, pelo prazer em te ler.

Zélia Moreira disse...

Stela,
Adoro Clarice. É incrível como ela consegue falar dos personagens e também das angustias de quem relata.
Deixo aqui um trecho que gosto muito, e é daqueles que a gente diz: Porque não foi escrito por mim?(quanta pretensão!)
Paixão segundo G.H.
...Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi.E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com as duas pernas é que posso caminhar.Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar...
Clarice Lispector
Texto do livro Paixão segundo GH.

Claude Bloc disse...

Stela,

Clarice guarda em cada palavra um enigma. Nem todos conseguem ir a fundo na sua essência, na sua forma tão peculiar de desenhar imagens, histórias, "modus vivendi". Você a interpreta com clareza e a mostra tocável, próxima, íntima de nossa alma.

Gostei!

Abraço,

Claude