Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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domingo, 13 de setembro de 2009

Siameses

Damião & Gabriel. Nomes comuns, nordestinos, saltaram nestes dias nas páginas de uma imprensa , tão ávida por novidades. Pobres, provenientes das áridas terras do Brejo Grande, já congenitamente dividiriam um destino duro sem amplas perspectivas. Não bastasse isso, como irmãos siameses , vieram ao mundo fundidos num só corpo. Mesma geografia e , necessariamente, uma mesma história.
Por falar em história, os antecedentes de outros tantos gêmeos , iguais, não parecem tão promissores. A Cultura Moche, peruana, já representava irmãos unidos, em suas cerâmicas, a partir dos anos 300 dC. O primeiro caso documental, no entanto, data de 945, na Armênia. Os mais famosos siameses talvez tenham sido os irmãos Chang & Bunker, originários de Sião, na Tailândia. Viveram por mais de 60 anos, no Século XIX. Trabalhavam num circo, cantavam divinamente, falavam cinco idiomas, tocavam múltiplos instrumentos. Tornaram-se ricos e famosos e a eles se deve a denominação pela qual a deformidade ficou popularmente conhecida. Há casos curiosos, como o de Violeta & Dayse do Texas que por volta de 1915, casaram com um só marido e , com dois sistemas genitais, tiveram cinco filhos, dois por um dos sistemas e três pelo outro. Na atualidade, os mais famosos siameses, são Donnie & Ronnie de Ohio, vivos e ativos aos 58 anos. A primeira tentativa de separação por cirurgia destes gêmeos aconteceu ainda no Século XVII, mas só a partir de 1950 se começaram a obter bons resultados, com o avanço da Medicina.
O passado não parece muito favorável aos gêmeos de Santana do Cariri. A maior parte das vezes, os siameses são explorados pela mídia, apresentados como bichos de zoológico. Para sobreviverem tiveram, na sua maioria, que trabalhar em circos e se exporem à curiosidade pública. Já existem informações de que uma rede de TV se ofereceu para levar Damião & Gabriel a São Paulo, com o fito de tentar uma cirurgia para separação. Por trás do aparente gesto filantrópico, certamente, se arma, mais uma vez,o picadeiro. Alguns pontos a mais no IBOPE, com certeza, pagarão o ingresso desta empreitada. Nem todos tiveram a sorte de Chang & Bunker. Sem falar no enorme e eterno conflito de ser duas almas , duas personalidades convivendo necessariamente em um corpo inseparável. Existem ainda impasses éticos e religiosos envolvendo os atos médicos necessários à cirurgia reparadora, uma vez que, alguns vezes, se faz necessários sacrificar uma das vidas para salvar a outra, principalmente em casos que os gêmeos têm órgãos vitais comuns.
Como a possibilidade de cirurgia para separação tem um história recente, de pouco mais de cinqüenta anos , e nem sempre é viável para os dois irmãos, muitas vezes os pais optam por não interferir na deformidade. E nisso, basta refletir sobre o passado, os gêmeos têm dado uma verdadeira aula de como conviver com esse terrível destino e, ainda assim, encontrarem espaço para trabalhar, para viver e buscar a felicidade em meio a obstáculos intransponíveis à vista de qualquer pessoa que se considere aparentemente normal. E acredito que eles têm muito a nos ensinar, neste capítulo. Homem & Natureza são também irmãos siameses e inseparáveis, uma convivência pacífica e harmônica é imprescindível para a sobrevivência do par e os tempos mais que nunca têm nos dado contínuas lições disto. Queiramos ou não, homens e mulheres, de diversas etnias, culturas e religiões são xifópagos , dividem entre si um mesmo corpo que é a terra e, sem o exercício da tolerância, da convivência pacífica, do trabalho mútuo , se extinguirão sem deixar rastros. E, cada um de nós, amigos, carrega consigo , um outro irmão siamês, secreto e imperceptível. Somos um somatório de Mr. Hyde & Dr. Jeckyll. O sorridente anjo que apresentamos à sociedade cotidianamente, oculta o lobo e o chacal que existem soldados no peito de todos humanos. Somos a foz desta dualidade, a confluência desta terrível e imprevisível teratologia.
J. Flávio Vieira

5 comentários:

socorro moreira disse...

"Homem e Natureza".
Você é um exemplo vivo de viver bem esse papel.
Aprendo no texto, aprendo no contexto !
Agora , o domingo está mais sol !


Abraços.

Carlos Eduardo Esmeraldo disse...

Parabéns Zé Flavio, por nos trazer com absoluta elegância de estilo, um assunto tão relevante e que nos dá a conhecer um pouco da vida de irmãos siameses. Em 1964, quando cheguei em Salvador, para estudar, havia duas irmãs assim e elas eram atração onde quer que chegassem. Sabia da existencia delas pela revista "O Cruzeiro", mas quando as vi ao vivo, dentro de um carro, num domingo que ia a um jogo na Fonte Nova, com a multidão correndo para vê-las, fiquei muito admirado. Pouco tempo depois elas faleceram, não sei bem como, mas parece que o coração de uma delas parou e a outra também morreu.

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Zé Flavio escreve muito bem a questão da xifopagia. E desta partilha de dois ele salta para questão da duplicidade em um. É o salto da dualidade que em escala maior se encontra no bem e no mal. Cita até o médico e o monstro. Confesso que tenho dificuldade com esta dualidade (não nego todas as dualidades). Acho que na idade moderna, este estilo da vida pelos fins, da ética dos fins, da eficiência dos fins; o conceito do bem e do mal surje como enfeite para seleção no processo de atingir-se os fins. Funciona mais como enfeite por empréstimo do velho maniqueísmo.

Claude Bloc disse...

J. Flavio,

Essa questão da gemelaridade, seja de que forma for, é sempre motivo de estudo e de curiosidade porque sai daquele padrão de individualidade a que somos acostumados. Meu pai era gêmeo univitelino. Na família havia muitos casos. Mas a questão dos siameses, a fusão de uma pessoa na outra, causa estranheza pela constituição física e orgânica de dois seres vivos e pensantes, sem dúvida.

De qualquer forma valeu sua reflexão no final do texto. Como sempre muito claro e bem exposto:

"Queiramos ou não, homens e mulheres, de diversas etnias, culturas e religiões são xifópagos , dividem entre si um mesmo corpo que é a terra e, sem o exercício da tolerância, da convivência pacífica, do trabalho mútuo , se extinguirão sem deixar rastros. E, cada um de nós, amigos, carrega consigo , um outro irmão siamês, secreto e imperceptível."

Isso nos leva a refletir junto a você. Passamos a acreditar que os amores que carregamos dentro de nós nos faz "siameses" por constituir-se numa parceria íntima no que tange a um sentimento (identidade unificada por um mesmo sentimento). (risos)

Abraço,

Claude

jflavio disse...

Agradeço aos amigos Socorro, Carlos Eduardo, Zé do Vale e Claude pelas interessantes considerações.Zé do Vale levanta a possibilidade moderna do pseudo-dualismo, uma espécie de dualismo utilitaristan que certamente tem tomado novos nuances em tempos atuais. o Carlos lembra um caso verdadeiro de consequências trágicas previsíveis. A Claude lembra o xipofagismo no amor, às vezes realmente parasitário, ainda bem que a cada dia fica mais fácil a cirurgia de separação, mesmo com algumas sequelas esperáveis de lado a lado.Abraço a todos!