Hoje, no dia de finados, resolvi escrever uma matéria não sobre os mortos (este será o tema da próxima matéria), mas sobre os que se matam, ou seja, sobre os suicidas. Mais especificamente, sobre o suicídio em si. Nesta análise, me propus a responder (mesmo que sem sucesso) algumas questões relacionadas ao tema: o que é suicídio, por que algumas pessoas se matam e outras desistem antes da consumação do ato, a participação genética sobre a decisão de “apertar o botão” ou não, entre outras. Espero contribuir para a formação de opinião sobre o assunto.
Antes que meus leitores (as) comecem a me censurar por abordar tão espinhoso tema, gostaria de apresentar alguns dados da (OMS) Organização Mundial de Saúde sobre o suicídio: cerca de 185 mil pessoas se mataram no mundo no ano 2000 – uma taxa de 14,5 para cada 100 mil habitantes. Isso significa um suicídio a cada 40 segundos. A ‘violência autodirigida”, como o suicídio é classificado pela OMS, é hoje a 14ª causa de morte no mundo inteiro. E a terceira entre pessoas de 15 a 44 anos, de ambos os sexos. Para piorar a situação, o suicídio vem sendo classificado ao longo do tempo como tabu, motivo de vergonha ou de condenação, sinônimo de loucura, assunto proibido na conversa com os filhos, pais, amigos e até mesmo com o terapeuta, o que só tem prejudicado o processo de discussão sobre este sério problema de saúde pública, além de expressão inequívoca de sofrimento individual.
Segundo o psicanalista e psiquiatra Roosevelt Smeke Carssola, da Sociedade Brasileira de Psicanálise, um dos maiores especialistas brasileiros em suicídio “todos já pensamos em suicídio em algum momento na vida. É um pensamento humano. Se não desejamos nos matar, ao menos cogitamos morrer – morrer para escapar do sofrimento, para nos vingar, para chamar a atenção ou para ficar na história. Mas resolvemos continuar vivos e melhorar nossas condições de vida. O suicídio, então, soa como um desatino. A pergunta que fica é: por que algumas pessoas desistem e outras não?”
A ciência tenta responder a esta pergunta complexa há muitos anos. Até agora, o único consenso sobre o assunto é que, por trás do comportamento suicida há uma combinação de fatores biológicos, emocionais, socioculturais, filosóficos e até religiosos que, embaralhados, culminam numa manifestação exarcebada contra si mesmo. Para decifra-los, os estudiosos recorrem à “autópsia psicológica”, um procedimento que tem por finalidade reconstruir a biografia da pessoa falecida por meio de entrevistas e assim, delinear as características psicossociais que a levaram à morte violenta.
Se vocês são bons observadores, já devem ter percebido que o suicídio geralmente é associado a causas predisponentes – a perda do emprego, o fracasso amoroso, a morte de um ente querido ou falência financeira – que agem como último empurrão para a ação contra si mesmo. Mas, segundo os especialistas, só a análise das características psicossociais do indivíduo pode revelar os reais motivos que, ao longo da vida, o auxiliaram a estruturar o comportamento suicida, ou seja, só a “autópsia psicológica” pode mostrar as razões para morrer que estavam enraizadas no estilo de vida e na personalidade do suicida. Bem complicado!
Mas, afinal de contas, o que é mesmo um suicídio, do ponto de vista técnico? “A definição de suicídio implica necessariamente um desejo consciente de morrer e a noção clara de que o ato executado pode resultar nisso. Caso contrário, é considerado morte por acidente ou negligência”, diz o psiquiatra José Manoel Bertolote, líder da equipe de Controle de Transtornos Mentais e Cerebrais do Departamento de Saúde Mental e Toxicomanias da OMS. O fato de estar consciente de que vai efetuar um ato suicida não elimina, no entanto, o estado de confusão mental que o indivíduo experimenta momentos antes da ação. “Ele não sabe se quer morrer ou viver, se quer dormir ou ficar acordado, fugir da dor, agredir outra pessoa ou, de fato, encontrar o mundo com o qual fantasia”, diz Roosevelt.
Há suicídios e suicídios. Por isso, os especialistas costumam avaliar a tentativa de se matar ou o ato propriamente dito a partir de duas variáveis: a intencionalidade e a letalidade. A primeira diz respeito à consciência e à voluntariedade no planejamento e na preparação do ato suicida. A segunda, ao grau de prejuízo físico que a pessoa se inflige.
Fatores agravantes
Dados da OMS indicam que o suicídio geralmente aparece associado a doenças mentais – sendo a mais comum, atualmente, a depressão, responsável por 30% dos casos relatados em todo o mundo. Estima-se que uma em cada quatro pessoas sofrerá de depressão ao longo da vida. Entre os sub-tipos, a depressão bipolar – em que fases de euforia e apatia profundas se alternam – parece ser a de maior risco. O alcoolismo (cuidado jovens!) reponde por 18% dos casos de suicídio, a esquizofrenia por 14% e os transtornos de personalidade – como a personalidade limítrofe e a personalidade anti-social – por 13%. Os casos restantes são associados a outros transtornos.
É claro que doenças psiquiátricas não são suficientes para explicar o comportamento suicida, já que outros fatores – emocionais, socioculturais e filosóficos – também entram em jogo. Na verdade, essas doenças provocam uma vulnerabilidade maior ao suicídio.
A genética
Hoje, sabe-se que indivíduos com alteração no metabolismo da serotonina – um dos mensageiros químicos mais importantes do nosso cérebro – apresentam maior risco de suicídio que os demais. O psiquiatra Humberto Corrêa, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em sua pesquisa sobre a genética do comportamento suicida, analisou pacientes com depressão e esquizofrenia e constatou que todos aqueles que haviam tentado se matar tinham a chamada função serotoninérgica diminuída (ou seja, problemas no conjunto de etapas que envolvem a participação da serotonina: sua síntese, sua ligação com os receptores celulares e seu transporte. Se há falha em alguma etapa, a atuação desse neurotransmissor se reduz).
“Quanto maior a intencionalidade suicida e mais letal o método usado, menor a função cerebral da serotonina”, diz Humberto. O próximo passo é pesquisar que genes ligados ao funcionamento da serotonina – são mais de 20 – poderiam estar mais associados ao comportamento suicida. O diretor do Laboratório de Neurofarmacologia da Universidade de Ottawa, Canadá, descobriu que pacientes depressivos portadores de uma mutação no gene responsável por codificar um dos receptores da serotonina apresentavam duas vezes mais chances de cometer suicídio que aqueles sem mutação. Os cientistas tentam entender agora a relação entre serotonina e suicídio. Portanto, fatores biológicos são particularmente importantes para a decisão sobre quando apertar o botão e “morrer”. Para se ter uma idéia mais clara sobre esta questão foi feito um estudo na Dinamarca que mostrou que os parentes biológicos de pessoas que foram adotadas quando recém-nascidas e que se suicidaram posteriormente tinham taxas de suicídio significativamente maiores que as observadas entre os parentes adotivos. Entre gêmeos idênticos, de acordo com pesquisa americana, a possibilidade de um irmão se matar caso o outro já tenha se suicidado gira em torno de 15%.
O suicídio e a linguagem
“O suicídio é um ato de linguagem, de comunicação. Como vivemos numa rede de relacionamentos, a nossa morte significa algo para as outras pessoas”, diz a psicóloga Maria Luzia Dias Garcia, coordenadora da Cínica de Psicoterapia Laços, em São Paulo, que analisou mensagens (bilhetes, cartas, gravações) deixadas por suicidas. Segundo afirma Garcia, o quadro psicossocial do suicida antes de cometer o ato é de embotamento, com se estivesse afogado em suas próprias emoções. Ele não aproveita os vínculos sociais para partilhar seus sentimentos e vê o mundo de uma maneira muito própria. Em outras palavras, o suicídio torna-se, então, um meio de expressão, uma fala que não pôde ser dita.
Os especialistas costumam diferenciar as tentativas de suicídio do ato em si, uma vez que, de acordo com a intencionalidade e a letalidade, o gesto pode assumir sentidos diferentes. As tentativas de se matar são vistas como um grito por ajuda, sintoma de uma falha tanto no sistema familiar quanto no grupo social. “O indivíduo não consegue pedir ajuda de outro modo, então opta por um ato extremo”, diz a psicóloga Denise Ramos, da PUC de São Paulo. “Por que ele não foi ouvido? Todos dão conselhos, mas ninguém ouve o que ele tem a dizer. Esse indivíduo, portanto, fica com a impressão de que não existe para o mundo.” Incapazes de comunicar a própria dor, os suicidas recorrem à fantasia para justificar a si mesmos a autodestruição. A busca por uma outra vida é a mais comum. O indivíduo enxerga no suicídio uma oportunidade de interromper uma existência infeliz e recomeçar, com uma nova chance de acertar. Matar-se também pode ser um jeito de acelerar o reencontro com pessoas queridas já mortas. Outras fantasias comuns acerca do suicídio são: gesto de vingança ou rebeldia, castigo rebeldia, castigo e autopenitência. “A idéia da não-existência é tão insuportável que a mente humana recorre inevitavelmente às fantasias para levar adiante o projeto de auto-aniquilamento”, diz Roosevelt.
Em resumo, o que as pessoas que tentam suicídio querem não é morrer. Na verdade, querem acabar com uma situação de desespero. Como não conseguem outra alternativa, recorrem ao suicídio. Mas, ao depararem com a possibilidade concreta da morte, percebem que não querem, de fato morrer. Alguém aqui pode argumentar que muita gente se vê em situação de grande desespero ou solidão existencial e, mesmo assim, não busca o suicídio. O que faz a diferença? Na verdade, não existe uma personalidade suicida – existe, sim, uma vulnerabilidade emocional (que pode ser trabalhada com o apoio de um parente, um psicoterapeuta ou um amigo). “Quem tem uma estrutura de ego frágil pode não suportar uma grande perda ou um momento de crise e, num impulso, acaba cometendo o suicídio”, diz Roosevelt. O ego se constitui a partir dos primeiros vínculos afetivos, do modo como o bebê foi cuidado pelas figuras de apego e da educação que a criança recebeu. Um ego fraco não tolera a frustração, não tem capacidade de espera, não suporta lidar com a impotência, com os limites e com os “nãos” que a vida impõe.
A banalização da vida e do suicídio
Para o filósofo argelino Albert Camus (1913-1960) só há um problema filosófico verdadeiramente sério sobre o qual o homem deve refletir: o suicídio. Segundo ele, a questão fundamental da filosofia é responder se vale a pena ou não viver. E aí, vale a pena viver?
“Uma reflexão mais profunda da contemporaneidade revela que a vida não é mais considerada um valor – pois, diante da moderna sociedade de consumo, perdeu gradativamente o caráter sagrado – e, por isto, o suicídio também foi banalizado. Já não representa mais um ato de contestação ou um ato exemplar nem parece resultado de uma dor psíquica insuportável, como foi no passado. O significado do suicídio também se perde nessa tendência ao não-pensamento que assola o mundo contemporâneo”, diz a filósofa Olgária Mattos, da USP. A sociedade de consumo é falsamente hedonista: promete gratificação imediata e, ao mesmo tempo, frustra as próprias perspectivas que oferece. O suicídio seria também uma conseqüência dessa impulsividade: uma reação às promessas não cumpridas de felicidade e satisfação instantâneas e à decepção que daí decorre.
O autoconhecimento dá trabalho, exige empenho e tolerância à frustração. A pergunta fundamental de Camus continua a martelar. “O suicídio agride porque nos diz o tempo inteiro da nossa possibilidade de escolha. Porque eu terei de me haver com o meu próprio potencial suicida, ou com o meu próprio desejo de morte” diz Olgária.
Levado às últimas conseqüências, o suicídio também pode parecer um ato de afronta a Deus. “Tirar a própria vida dá, ao indivíduo, a sensação de fazer algo que é divino e entrar em contato com o mistério”, afirma Denise Ramos, também filósofa da USP. “O suicida passa da extrema impotência – não posso mudar nada – à extrema potência – acabo com a minha vida quando quiser e como quiser. Nesse momento, em sua fantasia, se iguala a Deus por provocar um ato que vai além da natureza humana”.
Interessante notar que, do ponto de vista ético, a vida de cada ser humano tem sentido não só para si mesmo, mas para os outros também. Se acabo com a minha vida, acabo com todas as possibilidades de dar sentido à vida de outras pessoas. Falho em minha responsabilidade com os demais. Em outras palavras, as ações de cada indivíduo repercutem no grande sistema de relações sociais e ganham uma dimensão histórica – o que é feito hoje, mesmo em âmbito pessoal, tem sempre uma conseqüência futura. O suicídio funciona, assim, como uma brusca ruptura dessa rede.
O suicídio é um ato privado que não representa somente uma violência contra si mesmo, mas também contra mais, pelo menos, seis pessoas. Elas são forçadas a conviver com os sentimentos de vingança, vergonha, culpa, sofrimento psicológico, medo de enlouquecer e de também cometer o suicídio.
O sistema mata!
Émile Durkheim, no livro “O suicídio” clássico de 1987 apontava para uma relação entre o suicídio e a influência da cultura, do ambiente e da religião, seja como facilitadores, seja como limitantes. Pesquisa recente, realizada pelo Departamento de Saúde Mental e Toxicomanias da OMS, mostrou que as taxas de suicídio mais baixas encontram-se em países islâmicos, seguidos de países hinduístas, cristãos (mais baixas em católicos que em protestantes) e budistas, nessa ordem. As taxas mais altas vêm de países “ateus”, que compunham o antigo bloco comunista: Lituânia, Letônia, Estônia, Rússia, Cuba e China. A religião aparece, portanto, como um mecanismo de “proteção” contra o comportamento suicida (todas as crenças religiosas condenam, em maior ou menor grau, o suicídio). Combinadas a outras influências, a religião pode ser fator de estímulo para os “suicídios altruístas ou heróicos”, na definição de Durkheim. Os homens-bomba ligados a Al Quaeda que o digam! Cada membro do grupo está disposto a sacrificar a própria vida em prol das crenças.
Outro fato interessante é que, embora as mulheres sejam mais propícias a ter pensamentos suicidas que os homens, as taxas de suicídio masculino são mais elevadas. E os métodos que eles usam são mais definitivos e violentos, como uso de arma de fogo e enforcamento. Em média, ocorrem cerca de três suicídios masculinos para um feminino.
Cada sociedade tem uma taxa mais ou menos constante de suicídios. No caso do Brasil, a média é de 4,5 suicídios por 100 mil habitantes nos últimos 20 anos. Número relativamente baixo, se comparado á Finlândia, por exemplo, que é de 23,4 casos em 100 mil pessoas. As taxas brasileiras se elevam conforme a idade dos indivíduos, até atingir sua máxima expressão na faixa de 70 anos ou mais, quando chegam a 7,3 suicídios em 100 mil habitantes.
Segundo a OMS, há fatores que claramente aumentam a probabilidade de suicídio no grupo social. Taxas de suicídio são altas durante épocas de recessão econômica e de forte desemprego. Também se elevam em períodos de desintegração social e instabilidade política.
As políticas públicas
Para enfrentar o problema do suicídio, a OMS lançou em 1999, o SUPRE, um programa mundial para a prevenção do suicídio. O objetivo é reduzir as taxas de mortalidade de “violência autodirigida”, acabar com o preconceito em relação ao tema e a prestar assistência técnica aos países para a formulação de políticas públicas e programas de prevenção. As diretrizes baseiam-se no tratamento adequado de doenças mentais, na criação de campanhas educativas e de estratégias, como reduzir o acesso a instrumentos de autodestruição – armas de fogo e venenos agrícolas, por exemplo. Na mesma época, a OMS criou o SUPRE-MISS, um projeto conduzido em oito países a fim de identificar fatores de risco para o suicídio e métodos eficazes para diminuir as tentativas de tirar a própria vida.
No núcleo familiar e comunitário, a melhor prevenção é falar sem temores sobre suicídio e saber identificar os pedidos de socorro das pessoas próximas. No Brasil existe o CVV – Centro de Valorização da Vida, uma ong de atendimento humanitário criada a 40 anos e presente em todo o território nacional. A CVV, criada nos moldes da Samaritana, de Londres, uma entidade fundada em 1950 para atender pessoas angustiadas que precisam de apoio psicológico. No Brasil, só a CVV atende, em média, 1 milhão de ligações por ano. Isso revela a necessidade que as pessoas tem de falar sobre seus conflitos. Quando o assunto é suicídio, abrir-se pode ser terapêutico.
A experiência do CVV, dos Samaritanos e de outros programas semelhantes demonstra que o primeiro passo para evitar o suicídio está no resgate do sentido da existência. O que motiva o suicida é a falsa idéia de que sua vida não tem mais valor nem para si mesmo nem para os outros. O verdadeiro desafio parece fazer com que as pessoas percebam que sempre existe saída, não importa a situação. Que há como se reinventar e trabalhar em si aspectos de que gosta menos. Que nossa vida é importante para os outros também. E que sempre há alternativa, mesmo que, a princípio, seja dolorida. Afinal, a única coisa para a qual não há remédio – pelo menos, não nesta vida - é a morte.
Antes que meus leitores (as) comecem a me censurar por abordar tão espinhoso tema, gostaria de apresentar alguns dados da (OMS) Organização Mundial de Saúde sobre o suicídio: cerca de 185 mil pessoas se mataram no mundo no ano 2000 – uma taxa de 14,5 para cada 100 mil habitantes. Isso significa um suicídio a cada 40 segundos. A ‘violência autodirigida”, como o suicídio é classificado pela OMS, é hoje a 14ª causa de morte no mundo inteiro. E a terceira entre pessoas de 15 a 44 anos, de ambos os sexos. Para piorar a situação, o suicídio vem sendo classificado ao longo do tempo como tabu, motivo de vergonha ou de condenação, sinônimo de loucura, assunto proibido na conversa com os filhos, pais, amigos e até mesmo com o terapeuta, o que só tem prejudicado o processo de discussão sobre este sério problema de saúde pública, além de expressão inequívoca de sofrimento individual.
Segundo o psicanalista e psiquiatra Roosevelt Smeke Carssola, da Sociedade Brasileira de Psicanálise, um dos maiores especialistas brasileiros em suicídio “todos já pensamos em suicídio em algum momento na vida. É um pensamento humano. Se não desejamos nos matar, ao menos cogitamos morrer – morrer para escapar do sofrimento, para nos vingar, para chamar a atenção ou para ficar na história. Mas resolvemos continuar vivos e melhorar nossas condições de vida. O suicídio, então, soa como um desatino. A pergunta que fica é: por que algumas pessoas desistem e outras não?”
A ciência tenta responder a esta pergunta complexa há muitos anos. Até agora, o único consenso sobre o assunto é que, por trás do comportamento suicida há uma combinação de fatores biológicos, emocionais, socioculturais, filosóficos e até religiosos que, embaralhados, culminam numa manifestação exarcebada contra si mesmo. Para decifra-los, os estudiosos recorrem à “autópsia psicológica”, um procedimento que tem por finalidade reconstruir a biografia da pessoa falecida por meio de entrevistas e assim, delinear as características psicossociais que a levaram à morte violenta.
Se vocês são bons observadores, já devem ter percebido que o suicídio geralmente é associado a causas predisponentes – a perda do emprego, o fracasso amoroso, a morte de um ente querido ou falência financeira – que agem como último empurrão para a ação contra si mesmo. Mas, segundo os especialistas, só a análise das características psicossociais do indivíduo pode revelar os reais motivos que, ao longo da vida, o auxiliaram a estruturar o comportamento suicida, ou seja, só a “autópsia psicológica” pode mostrar as razões para morrer que estavam enraizadas no estilo de vida e na personalidade do suicida. Bem complicado!
Mas, afinal de contas, o que é mesmo um suicídio, do ponto de vista técnico? “A definição de suicídio implica necessariamente um desejo consciente de morrer e a noção clara de que o ato executado pode resultar nisso. Caso contrário, é considerado morte por acidente ou negligência”, diz o psiquiatra José Manoel Bertolote, líder da equipe de Controle de Transtornos Mentais e Cerebrais do Departamento de Saúde Mental e Toxicomanias da OMS. O fato de estar consciente de que vai efetuar um ato suicida não elimina, no entanto, o estado de confusão mental que o indivíduo experimenta momentos antes da ação. “Ele não sabe se quer morrer ou viver, se quer dormir ou ficar acordado, fugir da dor, agredir outra pessoa ou, de fato, encontrar o mundo com o qual fantasia”, diz Roosevelt.
Há suicídios e suicídios. Por isso, os especialistas costumam avaliar a tentativa de se matar ou o ato propriamente dito a partir de duas variáveis: a intencionalidade e a letalidade. A primeira diz respeito à consciência e à voluntariedade no planejamento e na preparação do ato suicida. A segunda, ao grau de prejuízo físico que a pessoa se inflige.
Fatores agravantes
Dados da OMS indicam que o suicídio geralmente aparece associado a doenças mentais – sendo a mais comum, atualmente, a depressão, responsável por 30% dos casos relatados em todo o mundo. Estima-se que uma em cada quatro pessoas sofrerá de depressão ao longo da vida. Entre os sub-tipos, a depressão bipolar – em que fases de euforia e apatia profundas se alternam – parece ser a de maior risco. O alcoolismo (cuidado jovens!) reponde por 18% dos casos de suicídio, a esquizofrenia por 14% e os transtornos de personalidade – como a personalidade limítrofe e a personalidade anti-social – por 13%. Os casos restantes são associados a outros transtornos.
É claro que doenças psiquiátricas não são suficientes para explicar o comportamento suicida, já que outros fatores – emocionais, socioculturais e filosóficos – também entram em jogo. Na verdade, essas doenças provocam uma vulnerabilidade maior ao suicídio.
A genética
Hoje, sabe-se que indivíduos com alteração no metabolismo da serotonina – um dos mensageiros químicos mais importantes do nosso cérebro – apresentam maior risco de suicídio que os demais. O psiquiatra Humberto Corrêa, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em sua pesquisa sobre a genética do comportamento suicida, analisou pacientes com depressão e esquizofrenia e constatou que todos aqueles que haviam tentado se matar tinham a chamada função serotoninérgica diminuída (ou seja, problemas no conjunto de etapas que envolvem a participação da serotonina: sua síntese, sua ligação com os receptores celulares e seu transporte. Se há falha em alguma etapa, a atuação desse neurotransmissor se reduz).
“Quanto maior a intencionalidade suicida e mais letal o método usado, menor a função cerebral da serotonina”, diz Humberto. O próximo passo é pesquisar que genes ligados ao funcionamento da serotonina – são mais de 20 – poderiam estar mais associados ao comportamento suicida. O diretor do Laboratório de Neurofarmacologia da Universidade de Ottawa, Canadá, descobriu que pacientes depressivos portadores de uma mutação no gene responsável por codificar um dos receptores da serotonina apresentavam duas vezes mais chances de cometer suicídio que aqueles sem mutação. Os cientistas tentam entender agora a relação entre serotonina e suicídio. Portanto, fatores biológicos são particularmente importantes para a decisão sobre quando apertar o botão e “morrer”. Para se ter uma idéia mais clara sobre esta questão foi feito um estudo na Dinamarca que mostrou que os parentes biológicos de pessoas que foram adotadas quando recém-nascidas e que se suicidaram posteriormente tinham taxas de suicídio significativamente maiores que as observadas entre os parentes adotivos. Entre gêmeos idênticos, de acordo com pesquisa americana, a possibilidade de um irmão se matar caso o outro já tenha se suicidado gira em torno de 15%.
O suicídio e a linguagem
“O suicídio é um ato de linguagem, de comunicação. Como vivemos numa rede de relacionamentos, a nossa morte significa algo para as outras pessoas”, diz a psicóloga Maria Luzia Dias Garcia, coordenadora da Cínica de Psicoterapia Laços, em São Paulo, que analisou mensagens (bilhetes, cartas, gravações) deixadas por suicidas. Segundo afirma Garcia, o quadro psicossocial do suicida antes de cometer o ato é de embotamento, com se estivesse afogado em suas próprias emoções. Ele não aproveita os vínculos sociais para partilhar seus sentimentos e vê o mundo de uma maneira muito própria. Em outras palavras, o suicídio torna-se, então, um meio de expressão, uma fala que não pôde ser dita.
Os especialistas costumam diferenciar as tentativas de suicídio do ato em si, uma vez que, de acordo com a intencionalidade e a letalidade, o gesto pode assumir sentidos diferentes. As tentativas de se matar são vistas como um grito por ajuda, sintoma de uma falha tanto no sistema familiar quanto no grupo social. “O indivíduo não consegue pedir ajuda de outro modo, então opta por um ato extremo”, diz a psicóloga Denise Ramos, da PUC de São Paulo. “Por que ele não foi ouvido? Todos dão conselhos, mas ninguém ouve o que ele tem a dizer. Esse indivíduo, portanto, fica com a impressão de que não existe para o mundo.” Incapazes de comunicar a própria dor, os suicidas recorrem à fantasia para justificar a si mesmos a autodestruição. A busca por uma outra vida é a mais comum. O indivíduo enxerga no suicídio uma oportunidade de interromper uma existência infeliz e recomeçar, com uma nova chance de acertar. Matar-se também pode ser um jeito de acelerar o reencontro com pessoas queridas já mortas. Outras fantasias comuns acerca do suicídio são: gesto de vingança ou rebeldia, castigo rebeldia, castigo e autopenitência. “A idéia da não-existência é tão insuportável que a mente humana recorre inevitavelmente às fantasias para levar adiante o projeto de auto-aniquilamento”, diz Roosevelt.
Em resumo, o que as pessoas que tentam suicídio querem não é morrer. Na verdade, querem acabar com uma situação de desespero. Como não conseguem outra alternativa, recorrem ao suicídio. Mas, ao depararem com a possibilidade concreta da morte, percebem que não querem, de fato morrer. Alguém aqui pode argumentar que muita gente se vê em situação de grande desespero ou solidão existencial e, mesmo assim, não busca o suicídio. O que faz a diferença? Na verdade, não existe uma personalidade suicida – existe, sim, uma vulnerabilidade emocional (que pode ser trabalhada com o apoio de um parente, um psicoterapeuta ou um amigo). “Quem tem uma estrutura de ego frágil pode não suportar uma grande perda ou um momento de crise e, num impulso, acaba cometendo o suicídio”, diz Roosevelt. O ego se constitui a partir dos primeiros vínculos afetivos, do modo como o bebê foi cuidado pelas figuras de apego e da educação que a criança recebeu. Um ego fraco não tolera a frustração, não tem capacidade de espera, não suporta lidar com a impotência, com os limites e com os “nãos” que a vida impõe.
A banalização da vida e do suicídio
Para o filósofo argelino Albert Camus (1913-1960) só há um problema filosófico verdadeiramente sério sobre o qual o homem deve refletir: o suicídio. Segundo ele, a questão fundamental da filosofia é responder se vale a pena ou não viver. E aí, vale a pena viver?
“Uma reflexão mais profunda da contemporaneidade revela que a vida não é mais considerada um valor – pois, diante da moderna sociedade de consumo, perdeu gradativamente o caráter sagrado – e, por isto, o suicídio também foi banalizado. Já não representa mais um ato de contestação ou um ato exemplar nem parece resultado de uma dor psíquica insuportável, como foi no passado. O significado do suicídio também se perde nessa tendência ao não-pensamento que assola o mundo contemporâneo”, diz a filósofa Olgária Mattos, da USP. A sociedade de consumo é falsamente hedonista: promete gratificação imediata e, ao mesmo tempo, frustra as próprias perspectivas que oferece. O suicídio seria também uma conseqüência dessa impulsividade: uma reação às promessas não cumpridas de felicidade e satisfação instantâneas e à decepção que daí decorre.
O autoconhecimento dá trabalho, exige empenho e tolerância à frustração. A pergunta fundamental de Camus continua a martelar. “O suicídio agride porque nos diz o tempo inteiro da nossa possibilidade de escolha. Porque eu terei de me haver com o meu próprio potencial suicida, ou com o meu próprio desejo de morte” diz Olgária.
Levado às últimas conseqüências, o suicídio também pode parecer um ato de afronta a Deus. “Tirar a própria vida dá, ao indivíduo, a sensação de fazer algo que é divino e entrar em contato com o mistério”, afirma Denise Ramos, também filósofa da USP. “O suicida passa da extrema impotência – não posso mudar nada – à extrema potência – acabo com a minha vida quando quiser e como quiser. Nesse momento, em sua fantasia, se iguala a Deus por provocar um ato que vai além da natureza humana”.
Interessante notar que, do ponto de vista ético, a vida de cada ser humano tem sentido não só para si mesmo, mas para os outros também. Se acabo com a minha vida, acabo com todas as possibilidades de dar sentido à vida de outras pessoas. Falho em minha responsabilidade com os demais. Em outras palavras, as ações de cada indivíduo repercutem no grande sistema de relações sociais e ganham uma dimensão histórica – o que é feito hoje, mesmo em âmbito pessoal, tem sempre uma conseqüência futura. O suicídio funciona, assim, como uma brusca ruptura dessa rede.
O suicídio é um ato privado que não representa somente uma violência contra si mesmo, mas também contra mais, pelo menos, seis pessoas. Elas são forçadas a conviver com os sentimentos de vingança, vergonha, culpa, sofrimento psicológico, medo de enlouquecer e de também cometer o suicídio.
O sistema mata!
Émile Durkheim, no livro “O suicídio” clássico de 1987 apontava para uma relação entre o suicídio e a influência da cultura, do ambiente e da religião, seja como facilitadores, seja como limitantes. Pesquisa recente, realizada pelo Departamento de Saúde Mental e Toxicomanias da OMS, mostrou que as taxas de suicídio mais baixas encontram-se em países islâmicos, seguidos de países hinduístas, cristãos (mais baixas em católicos que em protestantes) e budistas, nessa ordem. As taxas mais altas vêm de países “ateus”, que compunham o antigo bloco comunista: Lituânia, Letônia, Estônia, Rússia, Cuba e China. A religião aparece, portanto, como um mecanismo de “proteção” contra o comportamento suicida (todas as crenças religiosas condenam, em maior ou menor grau, o suicídio). Combinadas a outras influências, a religião pode ser fator de estímulo para os “suicídios altruístas ou heróicos”, na definição de Durkheim. Os homens-bomba ligados a Al Quaeda que o digam! Cada membro do grupo está disposto a sacrificar a própria vida em prol das crenças.
Outro fato interessante é que, embora as mulheres sejam mais propícias a ter pensamentos suicidas que os homens, as taxas de suicídio masculino são mais elevadas. E os métodos que eles usam são mais definitivos e violentos, como uso de arma de fogo e enforcamento. Em média, ocorrem cerca de três suicídios masculinos para um feminino.
Cada sociedade tem uma taxa mais ou menos constante de suicídios. No caso do Brasil, a média é de 4,5 suicídios por 100 mil habitantes nos últimos 20 anos. Número relativamente baixo, se comparado á Finlândia, por exemplo, que é de 23,4 casos em 100 mil pessoas. As taxas brasileiras se elevam conforme a idade dos indivíduos, até atingir sua máxima expressão na faixa de 70 anos ou mais, quando chegam a 7,3 suicídios em 100 mil habitantes.
Segundo a OMS, há fatores que claramente aumentam a probabilidade de suicídio no grupo social. Taxas de suicídio são altas durante épocas de recessão econômica e de forte desemprego. Também se elevam em períodos de desintegração social e instabilidade política.
As políticas públicas
Para enfrentar o problema do suicídio, a OMS lançou em 1999, o SUPRE, um programa mundial para a prevenção do suicídio. O objetivo é reduzir as taxas de mortalidade de “violência autodirigida”, acabar com o preconceito em relação ao tema e a prestar assistência técnica aos países para a formulação de políticas públicas e programas de prevenção. As diretrizes baseiam-se no tratamento adequado de doenças mentais, na criação de campanhas educativas e de estratégias, como reduzir o acesso a instrumentos de autodestruição – armas de fogo e venenos agrícolas, por exemplo. Na mesma época, a OMS criou o SUPRE-MISS, um projeto conduzido em oito países a fim de identificar fatores de risco para o suicídio e métodos eficazes para diminuir as tentativas de tirar a própria vida.
No núcleo familiar e comunitário, a melhor prevenção é falar sem temores sobre suicídio e saber identificar os pedidos de socorro das pessoas próximas. No Brasil existe o CVV – Centro de Valorização da Vida, uma ong de atendimento humanitário criada a 40 anos e presente em todo o território nacional. A CVV, criada nos moldes da Samaritana, de Londres, uma entidade fundada em 1950 para atender pessoas angustiadas que precisam de apoio psicológico. No Brasil, só a CVV atende, em média, 1 milhão de ligações por ano. Isso revela a necessidade que as pessoas tem de falar sobre seus conflitos. Quando o assunto é suicídio, abrir-se pode ser terapêutico.
A experiência do CVV, dos Samaritanos e de outros programas semelhantes demonstra que o primeiro passo para evitar o suicídio está no resgate do sentido da existência. O que motiva o suicida é a falsa idéia de que sua vida não tem mais valor nem para si mesmo nem para os outros. O verdadeiro desafio parece fazer com que as pessoas percebam que sempre existe saída, não importa a situação. Que há como se reinventar e trabalhar em si aspectos de que gosta menos. Que nossa vida é importante para os outros também. E que sempre há alternativa, mesmo que, a princípio, seja dolorida. Afinal, a única coisa para a qual não há remédio – pelo menos, não nesta vida - é a morte.
5 comentários:
Não adianda fingir que está tudo bem; não adianta fugir do problema ; não adianta fugir do assunto... Criar gostos pela vida, sempre !
- Isso adianta !
Júnior , aproveitou bem o peso da nostalgia de finados... Amanhã é outro dia !
Abraços, menino !
Socorro, muito obrigado pelos seus comentários. Eles têm me dado ânimo para melhorar a minha escrita. Um agrande abraço!!
Professor Júnior,
Gostei imensamente do seu texto sobre suicídio.Foi rico em informações,e em atualizações.A fundamentação científica foi perfeita.Parabéns!
Gostaria apenas só de lhe passar um dado:
nós que trabalhamos com Psicoterpia Breve e ou de Apoio dirigimos o foco
da atenção do nosso cliente suicida
para o problema atual vivido por ele; e dai começamos um trabalho intensivo de apoio centrado no sentido da vida.Claro que trabalhamoe em equipe multidisciplinar,onde em conjunto com Psiquiátras,Terapêutas ocupacionais,assistentes sociais(trabalhando a familia)tentamos fazer uma construção mental com esse paciente que possui uma alma.
Abraços e mais uma vez: lhe parabenizo pelo texto maravilhoso.
Liduina vilar.
Fica dado o Recado, Liduina. Obrigado!! Você, por acaso, conhece Maria Vilmar Machado Vilar?
Professor Júnior,
Assim só de nome ,não me recordo de
Maria Vilmar Machado Vilar.Mas se você me passar alguns dados,como:
de quem é filha? Ou de quem é mãe?
Pode ser que me lembre.
Abraço: Liduina.
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