Acredito que nada existe tão sincero e objetivo quanto aquele bilhete de despedida dos suicidas. Nele se colocam as verdades cruas e sem dissimulações, mesmo porque este tipo extremo de literatura não permite revisão e copidescagem. O estilo , normalmente , tende a ser mais substantivo e menos adjetivo. Quem mergulha nos mistérios da escrita busca a transparência dos suicidas. Percebe-se bem que os grandes textos são escritos com aquela certeza do testamento derradeiro, como se o autor estivesse subjetivamente deixando a vida para entrar na história. E num mundo tão pouco poético como o que vivemos, onde esmaeceram definitivamente as amarras do sonho, do mito, da transcendência; quem já não pensou, seriamente, em deixar este mundo pela porta dos fundos ? Muitos talvez tenham desistido com a certeza que a vida é insignificante demais para merecer um ato tão heróico. Este assunto veio à baila, quando me lembrei, esta semana da carta de um primo que , anos atrás, buscou a solução definitiva, na tentativa de afastar-se dos fantasmas que o perseguiam sem nenhuma trégua. Entre as mensagens que legava para a família, sem maiores ressentimentos, terminava com uma declaração de amor a uma de suas paixões : “E sempre fui Vascão!”
Não sei bem como, esta frase tocou-me a mente, já passados quase trinta anos do trágico acontecido, no momento em que, por ironia, o Flamengo chegava ao Hexa-Campeonato. Como rubro-negro, misturei minha alegria à satisfação de uma imensa torcida se que espraiou por todos os cantos do país. No fundo, imaginei que lá chegaríamos, pois, este ano, tínhamos enviado para junto dos anjos dois flamenguistas do mais fino jaez : Seu Almir Carvalho e o grande Orney Moura. Certamente eles lá estavam, cutucando nossos santos protetores, mexendo os pausinhos e secando, , dissimuladamente, concorrentes como o São Paulo e o Internacional.
Observando aquela explosão coletiva de euforia por parte da seita rubro-negra e , por outro lado, os atos de vandalismo da torcida do Curitiba, pelo rebaixamento à segunda divisão, pus-me a refletir sobre a fonte de tamanha exaltação que , às vezes , chega a beirar o fanatismo. A televisão só se apoderou das casas e consciências , aqui no Cariri, aí pelos anos 70. Antes disso assistíamos às partidas de futebol apenas pelo Rádio. Até os jornais, entre nós, não chegavam com regularidade. Que magia fazia com que as crianças escolhessem um time para torcer ? Muitos delas nunca tiveram o prazer de ver seus times jogar e, tantas vezes, sequer jamais conheceram fotografias dos seus ídolos. E mais, time de coração é para toda a vida, independentemente de desempenho, de vitórias, de campeonatos. Talvez a paixão do torcedor seja aquela única eterna, definitiva: até que a morte os separe; ou talvez mesmo sobreviva à foice da velha, como , agora, Seu Almir e Orney parecem provar. De que fonte flui tamanho potencial de energia ? Que força misteriosa faz com que o menino ainda pequeno já comece a balbuciar o nome do seu time predileto?
As guerras tão freqüentes na história da humanidade foram, paulatinamente, sendo substituídas pela diplomacia. Nossa sanha quase selvagem de ver escorrer o sangue dos inimigos se foi transferindo, pouco a pouco, para os coliseus. As batalhas hoje se travam, na sua maior parte, nos estádios. No fundo, no inconsciente coletivo, se assiste ao embate não de duas equipes esportivas, mas de dois exércitos. Por isso mesmo é que muito facilmente os estádios se transformam em campo de guerra e o que aparentemente parecia uma simples competição esportiva termina por reeditar as antigas batalhas com muitas baixas e feridos. Os jogadores vencedores são heróis imediatos e louvados como guerreiros míticos. Quando a Seleção Brasileira ganha da Argentina é como se tivéssemos, novamente, vencido a Batalha de Monte Castelo.
Quando diplomata em Los Angeles , Vinicius de Morais conheceu um milionário que não compreendia a razão do poeta querer voltar desesperadamente para o Brasil. Como, se estava residindo no paraíso terrestre, arrodeado das maiores beldades de Hollywood, circulando nas mais sofisticadas rodas da capital mundial do cinema? Em um poema chamado : “Olha aqui, Mister Buster”, Vinicius definiu claramente como é construída a escala de valores de cada um de nós:
“Me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:
O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?
O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?
O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?”
Além, muito além do paraíso artificial ofertado pela mídia, pelo consumo, existe, dentro de cada um de nós o sabor inefável dos pequenos prazeres, dos mais simples e inexplicáveis quereres. Ferrari novinha, Bolsa Louis Vuitron, Iate, Hotel 5 Estrelas ? Tudo bem, legal, legal... Mas sabe lá você o que é filhós, o que é um doce de leite da Isabel Virgínia, o que é um baião de dois com pequi, o que é um sanduíche do Enoque, meu Senhor ? O que é torcer pelo Mengão, Mister Buster ?
J. Flávio Vieira
3 comentários:
ai, que leitura deliciosa, mesmo que se reporte ao trágico, nostálgico...!
Permeada de emoção da primeira á última linha.
Emoções finais de vida, partida ... É o jogo !
E por falar em vida, faltam dois dias pra gente comemorar a vinda de uma figura ímpar.
Abraços
Puxa Zé Flavio, depois de ler este seu texto vou ter que deixar de ter raiva dos flamenguistas. Sou Vascão, amo esta vidinha pai d'égua. Cada menino que nascia em nossa casa, logo logo eu vestia nele uma camisa branca com a lista preta em diagonal. Um deles, aos seis anos, virou a casaca. Quando cheguei em casa, tava lá aquela afronta com a camisa de listras vermelhas. Parecia um malandro carioca. E o desaforo? "Papai, mudei, o Vasco nunca ganha..."
Abraços!
Abraço à socorro e ao Carlos Eduardo, flamenguistas de coração ( mesmo que enverguem camisas de outras cores afrontosas). Quem lá diabos entende o estranho bonde dos nossos desejos?
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