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"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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Colaboração:Claude Bloc


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sábado, 19 de dezembro de 2009

Rubem Braga por Carlos Drummond

RUBEM BRAGA, PROFESSOR DE LUCIDEZ
Carlos Drummond de Andrade



Rubem Braga tinha 18 anos e já se impusera como cronista em Belo Horizonte. Fazia no jornal "Estado de Minas" uma coluna de leitura obrigatória. Sempre andejo, lá um dia viajou, deixando de escrever. Mas o jornal resolveu engambelar os leitores, publicando uma crônica de outro, com assinatura dele. Braga leu e telegrafou ao diretor Afonso Arinos: "Não useis meu santo nome em vão".
Impossível usar o nome de Braga dando a sensação da prosa de Braga. Ela é patenteada. Seus elementos -- sensualidade, ternura, anarquismo, tédio, poesia, humour --, soltos, são manipuláveis por qualquer um. Reunidos, formam um composto especificamente braguino, que até dispensa assinatura. E como ele tem imitadores! Imitam, apenas.
Lembro-me muito do cronista jovem, esquivo e desconcertante. Ele namorava uma mocinha loura da Secretaria do Interior, e não era raro ver o relato dos tristes ou alegres passos do seu idílio, sob forma de crônica. Ninguém ousara fazer isso antes e ninguém pensava em estranhá-lo, pois era deliciosamente bem feito. Braga se tornou menestrel de todos os namorados sem expressão artística, e até dos que haviam namorado há muito tempo e voltavam a sentir o gosto da coisa, através do lirismo dele.
Pois um rapaz assim, apaixonado (à sua maneira) pela loura filha do Clarindo, um dia nos aparece correspondente do jornal no "front" da Revolução Constitucionalista de 1932, e logo se boqueja que ele era um espião terrível dos paulistas entre mineiros, espião que seria conveniente prender, submeter a corte marcial e, quem sabe, fuzilar. Oh, imaginação! (Mas a cara dele era meio russa, não sei.) Numa crônica, Braga confessa: "Eu era espião; era espião da vida no meio da morte. A guerra era demasiado estúpida para não me fazer sorrir, eu não reconhecia aliados nem inimigos; apenas via homens pobres se matando para bem dos homens ricos; apenas via o Brasil se matando com armas estrangeiras". Quem via essas coisas, sem a névoa passional que perturbava tanta gente, era um mocinho de 19 anos, que escreveria aos 34: "Eu observo as coisas com dois olhos que, embora castanhos e mesmo tirantes a verde, vêem este mundo com bastante clareza".
E esta é a qualidade mestra e inesperada de Braga: lucidez. Um homem que diz tantas coisas absurdas ou surrealistas pode lá ser bom observador da vida? Perfeitamente. Sempre que necessário, Braga emite juízos ponderados sobre fatos políticos, econômicos, sociais, e se nem sempre ou quase nunca sua opinião coincide com a opinião estabelecida ou vitoriosa, isto nada prova contra a justeza da sua visão intelectual e o seu bom senso; prova apenas que tais atributos não gozam de muito favor na coletividade.
Não é, porém, a clareza da apreciação de Braga, ante os acontecimentos por assim dizer jornalísticos, que impressiona. É sua clareza diante da vida em si, e das coisas naturais. Como espião da vida parecendo chateado, mas interessadíssimo -- anota os maravilhosos fenômenos da primavera e do verão, que passam despercebidos ao comum, e extrai deles o máximo proveito existencial. As artes da caça, da pesca e do amor, a observação constante do vento noroeste, o contato com praia e águas correntes, água corrente ele mesmo, a notícia de passarinhos, insetos, frutas, paisagens, a celebração quase litúrgica das graças e mistérios da mulher (para ser gentil, um dia ele me disse em carta que gostaria de me presentear com uma pequena fragata e quatro ou cinco mulheres), o dom de sentir, valorizar e distribuir a natureza como um bem de que andamos todos cada vez mais precisados -- esta a lição de Braga, "lição de insaciável liberdade e gosto de viver", que é grato proclamar no dia em que o admirável professor completa cinqüent'anos com a naturalidade, o gosto da vida e da terra, e o intenso sentimento poético e humano que tinha aos dezenove.


17 de janeiro de 1963


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