Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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Colaboração:Claude Bloc


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sábado, 20 de fevereiro de 2010

COMÉRCIO DE RAPADURAS - por Glória Pinheiro

Seguramente, se ainda fosse possível escolher não trocaria minha vida de criança por nada deste mundo. Embora fossem muitos os folguedos na cidade as brincadeiras se intensificavam no engenho Francisco Gomes, comandado por minha avó Dedé, desde que enviuvou em abril de 1950. Muitos banhos de levada, cuja fonte de água cristalina jorrava aos pés da Chapada do Araripe; eventuais pescarias; alguns guisados; passeios na padiola vazia no trajedo da fornalha à bagaceira, em alguns desses passeios observava minha avó sair da casa e sob o batente da porta implorar à Santa Clara que clariasse o dia, a chuva fina de repente sumia, por isso imaginava minha avó ser uma santa. Em outro momento eu lá estava descascando mandioca em uma roda de mulheres contadoras de histórias. Gostava de observar todo aquele processo rudimentar da fabricação da velha e boa farinha de mandioca. Outra hora íamos visitar os moradores. Para tudo isso contava com uma boa companhia, Izabel, filha de uns moradores de minha avó. Izabel todos os dias, as sete horas da manhã ia me acordar, esperta como era, sabia que as diversões estavam garantidas. Como não acordar de imediato vendo aquela criaturinha tão terna e delicada, tinha um rosto que mais parecia uma pequena cigana, a pele queimada do sol e olhos esverdeados. Apesar da humilde condição de vida que levavam ela e a família, composta de pais e dois irmãos mais velhos já na lida, demonstrava ser uma criança feliz. Era uma garota tranquila uma boa companhia para as estripulias do dia. Era assim minha querida amiga Izabel, filha de uma família pernambucana. Depois que se foram jamais soube notícias dela, restaram apenas boas lembranças daquela convivência feliz. Das vezes que indaguei sobre ela me falaram que haviam voltado para Pernambuco. Sempre que lembro de Izabel, me vem a mesma pergunta, evidentemente ela não usava burka, mas qual o destino reservado para Izabel? Desejo que esteja bem.
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Agora é que começa a história. Como observadora atenta, descobri no engenho umas formas de rapaduras de tamanho reduzido, o produto final correspondia ao tamanho de uma rapadura do tamanho normal. Foi o primeiro passo para me tornar uma "empreendedora". Os trabalhadores do engenho passaram a fazer tantas rapaduras quantas eu pedisse e conseguisse levar para o Crato. Agora só precisava abrir o mercado para comercializar. Para minha surpresa, não foi complicado, muito pelo contrário. Desde o primeiro dia que me apresentei na bodega do Sr. Joãozinho, localizada onde o vento faz a curva, ou seja, no início da Rua Dr. Irineu Pinheiro, próxima de nossa casa. Quando levava o "ouro melado" o Sr. Joãozinho contava e pagava o que valia. Ao final de cada "negociação" falava contente: "- Quando tiver mais, pode trazer". Acredito que o comprador era justo e leal porque saía da bodega com bastante dinheiro. Até a idade de 14 anos pratiquei esse comércio das vendas das rapaduras, duas vezes ao ano. Para mim significava uma certa independência porque num determinado tempo tinha dinheiro suficiente para custear o cinema da seção das quatro no Cine Moderno, comprar sorvete e balas.
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Naquela época numa segunda-feira, dia em que os trabalhadores rurais se apresentavam para a prestação de contas e receberem o pagamento semanal, presente em nossa casa estava uma senhora já com alguma idade, não precisou muito para eu entender que minha mãe a estava encaminhando para seu tio médico em Fortaleza para uma cirurgia no seio. Imaginei a possibilidade daquela pobre mulher não retornar mais após aquela complicada cirurgia. Não precisei pensar muito, peguei todo aquele dinheiro da recente venda das rapaduras e entreguei àquela senhora. Sempre tive a certeza que foi um dinheiro muito bem empregado pois serviu-me a experiência para não ter o desnecessário apego ao dinheiro. Por isso sempre agradeço a oportunidade que me foi dada por Ele e, ainda, de ter me tornando uma pessoa mais prática e menos teórica.
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Por: Glória Pinheiro

4 comentários:

Antonio Alves de Morais disse...

Gloria Pinheiro.

Parabens pelo belo texto. Uma historia de vida testemunhada por seus amigos e familiares em Crato. Toda vez que voce aqui vem a passeio, visita as localidades e pessoas que fizeram parte deste cenario de sua infancia, que lhe fizeram uma pessoa mais pratica e menos teorica.

Parabens

Anônimo disse...

Glória,

Parabéns pelo texto! Além das boas lembranças de sua infância, assimilou bem os valores recebido de seus pais.
Essa é a verdadeira herança que recebeu de seus pais,a prática do amor ao próximo. Com a sua atitude de desprendimento ajudou a alguém que precisava e em troca recebeu a felicidade que é servir ao próximo.

Abraços

Magali

Claude Bloc disse...

Glória,

Quando leio teus contos e causos me lembro que você fez/faz parte da construção de minha vida...
Mergulho direitinho na hostória!

Abraço e obrigada pela ligação...

Claude

Glória Pinheiro disse...

Morais, Magali e Claude, são bons amigos. Por isso vocês escrevem coisas bonitas. Obrigada, queridos amigos. Mas não exagerem, ok?
(risos).
Abraços
Glória