Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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sábado, 6 de março de 2010

Descanso no silêncio de Itacimirim e o dia é manso - por Ana Cecília S.Bastos






Só me quero mar e verde e bichos e rios. Rios da infância que não são chamados e insistem em chegar, sensação de repouso e aderência ao real, a terra molhada e o cheiro de profundidade como extensão dos nossos corpos de criança, que, no entanto, dela eram feitos (“De que são feitos os meninos, de que são feitas as meninas”? perguntava). O barro e a terra onde nos plantamos até hoje.

Itacimirim é conchas do mar, que aparecem a essa época do ano. Ainda aparecem, mesmo quebradas e tímidas. As caravelas e sua transparência, seu violeta infinito. Os bichinhos que emergem da na grama, besouros multicores, lagartos e até um siri que veio do mar até em casa, migrante sem norte, atordoado. O mar que um dia vai inundar nossa casa... Os gatinhos que vêm à noite brincar na grama, ariscos mas sempre vindo quando eu chamo (também porque estou aberta, relaxada, nenhuma dor de cabeça, nenhum cansaço ou irritação ou pressa ou agonia ou compromissos de não ser, e assim me reconhece o que é bicho).

Os pássaros, todos reconhecidos por meu pai, e amo perguntar-lhe e nunca saber dos nomes para poder perguntar de novo e ouvi-lo em seu saber mais genuíno de menino passarinho. São muitas espécies que vivem aqui, e cantos vários, e nomes belos (casaca de couro, viana, graúna, sabiás, ferreiro...). Ouvir o mar e os pássaros, privilégio e necessidade vital. Agora o silêncio é absoluto, todos dormem nessa hora quente da tarde. Escuto o silêncio, e há pássaros ao longe, e são diversos, e são de versos, palavra nenhuma poderia preencher esse momento. Esse lugar está sempre aqui e nunca o tenho como agora... O silêncio, o pai e a mãe, o meu amor só para mim. Mas as crianças, quando vêm, são parte da grama e do mar, se não fossem as preocupações do cotidiano que vêm junto via os adultos.

E os irmãos, não sou sem eles. Como no livro de Marguerite Duras, o tudo que Luís evocava ao me dar de presente. E eu que não registrei, ou mal registrei, ocupada, e nunca o fiz sabedor do que significou para mim. Mas ele sabe, contudo, porque o nosso tecido de ser irmãos é precioso. Falta o fazer saber sem o qual somos silenciosos e nos colocamos cortinas e banalidades; ele sabe que ser irmãos é poder chorar pelas mesmas coisas.

Vislumbro nossa infância de nove irmãos, de ser criança muito, e os pais tão jovens como há muito fui. Minha mãe conta que até Luís nascer todos dormíamos no seu quarto; ela nunca abriu mão de cuidar de nós à noite. Eram três, quatro berços. Viro ternura e quase choro ao ver - na lembrança ainda, uma lembrança dentro de um corredor no qual minha mãe toma minha mão e seguimos - os berços, o cestinho enfeitado e mantido tão limpo com as coisas do nenê. A caixa plástica para mamadeiras e demais utensílios, protegida em um cantinho especial da cozinha. Os objetos suaves na penumbra do quarto e o cheirinho de bebê, tão naturalmente gerado naquele tempo, misto de leite e lavanda Johnson e talco e hipoglós e fraldas de pano sujas.

Minha mãe me conta desses arranjos para demonstrar o quanto ela me queria. Desde que chegaram de Ubajara, e acho que é a primeira vez que realmente vivem, mesmo que por cinco dias, em casa de um filho na chegada de um neto – eles falaram repetidamente sobre o quarto de sua netinha caçula: muito rosa e enfeites e rendados, um exagero que eles estranham. Fico enternecida ao vê-los, esses avós convivendo com práticas de criação tão distantes da sua experiência de pais, e obtendo um equilíbrio entre estranheza, descoberta e aceitação que só se explica pelo amor.

Imagino os dois com três filhos de até quatro anos de idade, e mais um por chegar. E o que minha mãe conta, de querer estar perto às noites para estender a mão sobre a gente ao primeiro chorinho ou sinal de inquietação, e acalentar baixinho, um cicio, de modo que a gente nem chegava a chorar, voltava para o sono.

Não lembro, esse tempo é só imaginação. Mas me parece que vejo nitidamente como era, e sei em algum lugar que éramos crianças tranqüilas, e que chorávamos pouco, e que era um acontecimento se algum chorasse muito à noite. Não me vejo quando eu era o meu ser original... no tempo que não lembro, ainda intacta.

Sou oceano nas extremidades e sou terra. A infância é mar e terra, e aquele poço profundo no Caboclo – trilha estreita, árvores mirradas mas envolventes, a nos emprestar galhos dos quais pulávamos na água, trampolim de delícias e completude.

Estou à toa e as lembranças também. As conversas fluem, as lembranças vêm, gratuitas, livres, sem nenhuma exigência de nexo.

Há um novo milênio e quero verdades. Verdadeiramente viver. Sentir e significar cada momento e cada tarefa.


Foto: MVítor.

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