Para quem bebe a vida em Paracuru, nasceu num sítio, na periferia da cidade de Crato, que cabe, inteirinha, sem sobras, no meu ser, entre os shoppings do Rio de Janeiro, prefere o “Downtown”, na Barra da Tijuca. Com suas ruas a céu aberto, bares e lojas. No centro existe um prédio enorme, acima do qual estão 13 cinemas – invólucros modernos do Moderno, Educadora e Radio Araripe. Neste mesmo prédio um Café Crato, é do Armazém, mas fiquemos com o primeiro nome. Tudo por quê?
Estou aqui numa mesa de varando do Café. À frente a figura profética de Bruno Pedrosa. Com sua voz mansa e o conteúdo telúrico. Severo, de olhares para os vendilhões do templo. A arte, especialmente as artes plásticas. Bruno tem o orgulho dos bem sucedidos cearenses na vida. Se a frase não se compuser da toponímia cearense, perde todo o sentido. O sucesso de cearense é aquele dos primeiros pingos de água quando a seca tudo devastara. Bruno Pedrosa faz seu caminho circular, como Abrahão, e foi “chamado” por Deus para imolar seu filho na demonstração extrema de amor ao pai ou de desrespeito aos seus ordenamentos.
Bruno Pedrosa não faz nem uma e nem outra coisa. Tanto se encontra nos Torrões como igual aos pés do monte Grappa. É a mais radical solução, fez aquilo que Abrahão passivamente esperou de Deus. Imolou o filho e não imolou. É algo que, radicalmente, se encontra no Riacho do Machado ou em qualquer vírgula de uma sentença escrita. Entre nós e os outros. Aliás, Bruno Pedrosa seria literalmente o que a escrita em castelhano tem para o significado nós, Bruno é um “nosotros”. Nós-outros.
Então, dois cearenses neste desterrado mundo, pleno de raízes e satisfações a tomar, começamos um jogo de perguntas e respostas as primeiras comigo e as segundas com ele.
Bruno, começando pelo começo. O quê é o Crato para você?
(Rindo e, por incrível que pareça, até rindo tem sotaque de cearense) Você me pergunta isso por começo com zelo de sua terra natal. Eu tenho um ponto exato, como o centro de uma circunferência que são as terras dos meus antepassados, num limiar entre Cedro e Lavras. Mas o Crato que é tanto para você é muito para mim. Foi a minha ruptura, do coletivo que era no Riacho do Machado. Lá conheci a vida urbana, os personagens instáveis desde mundo fluido. Estudei, noutra forma de aprendizado através do papel e do discurso formal. Muito diferente do ensino circunstancial do dia-a-dia com meus pais, avós, tios e moradores. Até mesmo daquele ensino estrutural das longas conversas no alpendre de casa.
O Crato tem um acervo de gente que está aqui em mim e que nunca se apartará. A Claude, Dominique, toda a história fantástica de seus pais, e irmãos. A Azeneth, filha de Luizinha e Derval Peixoto, Telma Saraiva e a querida Edilma família das imersões pictóricas, nos meus sonhos de artista. Lembro de tanta gente que não preciso dizer nesta conversa, que mesmo não citando como a faço a Ronaldo Brito, Zé Flávio e Socorro Moreira, são por demais minhas e jamais as esqueceria.
Bruno o que você diria da impossibilidade de um artista que ficou no interior e sem a visibilidade dos grandes centros, ricos que podem pagar a arte, vivem num isolamento transformado em frustração e perdas?
Bastaria apenas lembrar um único artista cearense que é universal e viveu a plenitude do que é arte tirando o sustento do solo deste chão. Que não explodiu em letreiros luminosos, não freqüentou a lista dos mais lidos dos jornais e revistas do Sul Maravilha. Que teve a sua primeira impressão em livro produzida ali mesmo, numa esquina do Crato. Que já tinha a idade do avô quando atravessa a classe média letrada e ilumina os salões literários. Eu falo de Patativa do Assaré, um artista completo, profundo e transformador.
Então o que explica na prática um grande artista?
Perseverança, dedicação, total e exclusiva a uma arte.
Mas o nosso Patativa nunca viveu da própria arte. Dependia da safra dos seus legumes, da cria dos seus animais para se vestir, beber e comer. A si e a sua família.
A poesia de Patativa só é grande porque brotada das intenções e dos frutos do mundo. Cada ciclo de fertilidade era uma esfera poética. Cada desastre social era uma trova sobre a perplexidade da humanidade. Cada maldade política era um amor pela vítima e feroz crítica ao agressor. Patativa misturava poesia com a limpa do mato, a colheita do feijão, o milho das galinhas.
Mas Bruno tudo pode ser apenas poesia nossa neste ambiente agradável se não considerar a questão da educação do artista. A formação para perfeito uso das técnicas de expressão de seu talento.
Nem sempre a técnica. Seguramente não é a trilha que me leva, mas os meus pés. A maior prática nas artes plásticas é a utilização lúdica dos materiais. Lúdica e criativa. Que, aliás, são inseparáveis: a ludicidade é a alegria de criar. Não é o jogo em si como sugere a palavra, mas o jogo no condicional: a alegria de jogá-lo. E por não ser apenas o jogo e suas regras, é a alegria despachada dos cânones que formam aqueles pilares inúteis.
Bruno as artes são tantas, tão vasto é o mundo dos materiais, tão variantes são as estéticas e as escolas, que é impossível ao comum das pessoas, fazer o que o artista faz: a ludicidade do contato com a obra exposta. Por isso é comum se dizer gostei e não gostei. Numa simplicidade que parece estimular a passagem rápida para outro objeto de arte. Uma fuga daquilo que não compreendo.
Nesta situação é melhor mesmo é fugir dos sentimentos classificatórios. Gostar e não gostar é mais da culinária, é do sabor, não cabe em outras artes, especialmente as plásticas. Aí o que mais aproximaria a pessoa da obra é se compreende ou não compreende a arte. Esta simples conclusão lhe abre a porta para coisas vulgares ou invulgares. Para a percepção entre a arte única e o produto em escala.
E os consumidores de arte? Especialmente aqueles que compram caro uma obra famosa?
Estamos falando aí de duas coisas que parecem juntas, mas não são: a formação do valor de uma obra de arte e a decisão de aplicar milhões na compra dela. A formação tem componentes históricos, políticos e econômicos. Já a decisão, em que pese ocorrer numa prática comercial, tem dois veios principais: aquele que decide apenas para ter status, alçar posições no alpinismo social e o que decide por afinidade com a obra, busca sua integração à própria materialidade do mundo que o cerca. Ambas, como espero ter deixado claro, pertence ao campo puro do materialismo.
Bruno quando dizemos artes plásticas, falamos de uma produção artística de expressão mundial, que tem conhecimentos específicos e dependem de aprendizado da população para compreendê-las melhor. Como você pensa isso?
Olhemos o Crato e Juazeiro. Começando pelo primeiro. Juazeiro é a confluência da cultura nordestina em suas diversas manifestações, a escola está na romaria, no mercado, na estátua, no artesanato, nos objetos que sobem e descem os ônibus e paus de arara. Já agora se volte para o Crato sem o Museu Vicente Leite. E mesmo para Juazeiro sem igual instituição. Então, as pessoas necessitam de educação artística nas escolas do ensino fundamental, precisam de acervos com os quais possam interagir, é preciso que se façam exposições, manifestações para que se forme um público compreensivo.
Bruno vou provocá-lo. Levá-lo a um constrangimento. O que você pensa de certas manifestações estéticas que visavam “escandalizar” a burguesia de salão e os preconceitos da pequena burguesia? Por exemplo, como você considera os desconfortos provocados por Marcel Duchamp?
O fio da navalha em que tais manifestações se encontram. Primeiro o fio que data as manifestações, após o qual já é uma arte datada, localizada num passado, sem força, apenas referência. O segundo fio é o do espaço da manifestação, não é aquele de pequenos grupos, dependem de grandes públicos como Bienais e animam o tédio destas programações que se repetem apenas para cumprir calendário. Talvez eu tenha problema de compreender esta arte de instalações. Quem sabe um dia compreenda e até possa me encontrar nela. Mas apenas um último pensamento: como é feito para aluir os valores arraigados de uma classe social, considere, inclusive a possibilidade de apenas ser um blefe.
Bruno e como você classificaria o artista de vanguarda e o de instalação?
O artista de instalações tem seu papel, pois se vive cada vez mais nos espaços urbanos e eles são vivos, mutantes, precisam expressar aquilo que cada geração, cada ciclo da história dizem. Já o artista de vanguarda é mais um fenômeno histórico, limitado pela história. Não existe sempre uma vanguarda revolucionária. Existem períodos mais estáveis no mundo em que a natureza da criação é mais longa, pois, é maior e mais vasta, aquela estética que representa tal período da história. Vanguarda é apenas tática de guerra.
E você? Como foi teu percurso de formação?
Sou um artista brasileiro, formado na realidade do país e em escola daqui. No começo tive que mergulhar na arte que vinha lá de trás até chegar na minha geração. Começamos pela arte acadêmica, dominando os conceitos e compreendendo tanto a estética como sua evolução histórica. A minha arte inicialmente era figurativa, depois evoluiu para a arte abstrata, um abstracionismo lírico, expressionista, que avança com o domínio dos cânones acadêmicos, até para negá-los.
Quando você diz que não compreende a arte de instalações, quer dizer que não a pratica por certo?
O meu trabalho não é no preenchimento do espaço aberto ou circunscrito. Eu crio no volume, transformo o volume, ele se expressa como a criação de sua transformação. Eu e muitos artistas, a maioria diria, mas não esqueça que a palavra mais arquetípica da minha vida é “Torrões” (a fazenda onde se criou). São estes os objetos oriundos de uma “construção” maior e anterior. Minha arte vai ao antes das coisas como se apresentam no mundo.
Bruno quais seus planos para os próximos anos?
O museu de Lucca vai comemorar sessenta anos como simbologia de idade, quarenta anos da primeira exposição fora do Brasil e 20 anos de residência na Itália com uma série de exposições em museus, com uma série de trabalho dos últimos dois anos. São 100 quadros a óleo de dimensões média e grandes, 25 esculturas e 25 desenhos a pastel seco.
Estas exposições começarão pelo Brasil no museu de arte do Paraná, Curitiba, em agosto de 2011. Depois no Rio de Janeiro entre o Museu Nacional de Belas Artes e o Museu de Arte Moderna de Niterói e seguida vai para o museu de Arte Moderna de São Paulo. Cada amostra terá no mínimo 40 dias e no máximo 60 dias. Saindo do Brasil vai para a Fundação Pablo Atchugarry em Montevideo, depois para a Fundação Borges em Buenos Aires. Depois retorna para a Europa, entrando pela Holanda em Haia, em seguida Bélgica, Paris, Lisboa e Lucca.
Acompanhando as mostras irá um livro dos quarenta anos do trabalho, em quatro línguas, distribuição na Europa e EUA, editado pela Editora Campanoto.
Bruno e quando o artística larga o cinzel e o pincel e pega novamente a vara de pescar no Riacho da Barra?
Nunca. A criação artística não é um trabalho, é uma necessidade espiritual. Como o espírito nunca morre, por sob o cinzel e o pincel, corre o Riacho da Barra.
4 comentários:
Zé do Vale,
Isto sim é que é entrevista!
Fantástico, visto que pleno de interesse para nossa cultura tão dilacerada e tão pouco valorizada no nosso meio, embora nosso Cariri seja riquíssimo em valores - em todos os âmbitos da cultura. Um celeiro cultural que precisa voltar a efesvescer.
Felizmente muitas vozes estão se levantando para por fim ao silêncio...
Fantastique!
Abraços a você e ao Pedrosa.
Claude
Do Vale,
Que coisa boa abrir o Cariricaturas
e encontrar essa entrevista com meu amigo irmão Pedrosa. Estou chegando de um encontro de artistas no Tenis Club iniciativa de Salatiel seguido de honrarias. Estimulo fundamental para revigorar os ânimos esquecidos na cidade da cultura.
Ainda tem alguem tentando conservar a chama viva.
Parabens pela intrevista.
E quanto ao meu amigo, é esse ser humano maravilhoso.
Grande abraço !
Passei o dia arranjando assunto na casa da família: mãe, irmãs, sobrinhos e netas...
Quando retorno, abro o Cariricaturas, e me delicio com a tua postagem , melhor do que poderia imaginar.
Existe no Cariricaturas a lacuna das entrevistas... Hoge você fez a abertura com chave de ouro. Muito bem, menino Grande, grande, grande !!!!!!!!!!!!!!!!
Só posso dizer que tenho muito orgulho de você, e do Bruno Pedrosa !
Gente que o Cariri botou no mundo pra ensinar e brilhar !
Dedé,
Parabéns, trabalho excelente. Agora, se me permite, uma crítica: faltou fotos para ilustrar a matéria. Abraços
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