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"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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Colaboração:Claude Bloc


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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A Primeira Pedra



Sakineh Mohammadi Ashtiani é uma iraniana de 43 anos e que nestes dias se tornou notícia na imprensa mundial . O motivo, como sempre, nestes casos em que envolve países do terceiro mundo, vem à tona com as piores causas.Mais ainda quando o Irã vê-se metido numa controvérsia mundial sobre a produção de armas nucleares. Nada de fatos heróicos, de recordes , de fabulosas obras de arte . Sakineh foi condenada à morte , por um motivo banalíssimo. Viúva, mesmo assim, foi acusada de adultério e recebeu a penalidade absurda e, não bastasse isso, mais terrível ainda na sua forma. Deverá ser enterrada a meio corpo e morta por apedrejamento. A sentença parece até ter sido arrancada de tempos bíblicos. E, por mais incrível que possa parecer, o foi. Boa parte dos países islâmicos não têm qualquer separação entre Igreja e Estado e a Constituição do país, os Códigos Civil e Penal terminam por se resumir nas páginas do Alcorão. O livro sagrado dos mulçumanos tem mais de mil anos e, como tal, não sofreu qualquer upgrade em todos esses anos. A maior parte das religiões do planeta padece deste dissonância entre as inflexíveis regras de moralidade ditadas por seus livros ditos sagrados e a dinâmica natural do universo e dos costumes. Como conciliar a estática daquilo que foi ditado há séculos, com o dinamismo da vida e as transformações avassaladoras do mundo que a cada instante modifica-se da água para o vinho, como um caleidoscópio? Quando Estado e Igreja formam um só corpo, então, as fissuras se tornam presentes, enormes, irreconciliáveis. Imaginem se no Brasil os casos de adultério fossem todos tratados da mesma forma? Ia faltar pedra no mercado para atirar em tanto condenado. Houve uma forte pressão da comunidade mundial e, ao que parece, o apedrejamento foi cancelado e a pena comutada para enforcamento. Grande vitória da diplomacia mundial!
A questão referente a Sakineh traz consigo um sério impasse ético. Na nossa visão ocidental, existe uma perversidade impensável na sentença imposta à iraniana. Que direito tem o estado de se imiscuir numa pendência de caráter francamente afeito à individualidade da pessoa humana? E mesmo que se tipifique o adultério como crime, a pena de morte nos salta aos olhos como uma loucura ímpar. Mas surge, no horizonte, a encruzilhada ética: temos o direito, com nossa cultura ocidental, de julgar os atos, as leis, os costumes de uma outra cultura? Qual o balizamento para se depreender que nós estamos certos e eles errados? Eles, do seu lado, têm o mesmo sagrado direito de nos julgar segundo suas regras e tradições. Para que lado a verdade puxará o fiel da balança?
Por outro lado, quase ao mesmo tempo, os jornais estamparam o caso da Eliza Samúdio suspeita de ter sido trucidada cruelmente pelo goleiro Bruno em Belo Horizonte. Sem falar no assassinato da advogada Mércia Nakashima, de São Paulo, cujas evidências levam a suspeita da autoria ao namorado Mizael. Mera coincidência? Infelizmente, não! No Brasil, por incrível que possa parecer, a pena de morte contra a mulher é uma instituição organizada e azeitada. Na última década mais de 41.000 mulheres foram mortas, uma média de 10 a cada dia. Destes casos, mais da metade foi causada por motivo fútil, como meras discussões domésticas. 10% envolviam ciúmes e, um outro tanto, o uso de drogas. No Ceará mais de mil boletins de ocorrência são feitos a cada mês por violência contra a mulher.E aqui, entre nós, só no ano passado, foram assassinadas 147 e --pasmem, amigos ! -- 23 só aqui no Cariri.
No mundo todo, a situação do sexo feminino não é menos vulnerável. Estima-se que na América Latina e Caribe entre 25% a 50% das mulheres sofrem violência doméstica. Segundo o Banco Mundial entre 5 a 16% dos anos saudáveis de uma mulher são perdidos por conta da violência, que só nos Estados Unidos custa entre 5 a 10 bilhões de dólares todo ano.
Como vemos, a absurda penalidade imposta a Sakineh, não lhe é exclusiva. Até mesmo a crueldade da execução é quase uma regra: apedrejada , esquartejada, oferecida à ração de cães, afogada, queimada. O que varia ? No Irã, o estado submete o réu ao menos a um a julgamento, faccioso , parcial, certamente. Entre nós, no entanto, o júri , o juiz e o carrasco são os próprios companheiros destas jovens que as executam sumariamente sem nenhum direito a defesa.
Para combater essas as formas de opressão é preciso ter coragem de mergulhar no pântano e buscar a raiz da árvore carnívora.. É preciso, no entanto, lembrar que a absurda pena imputada a Sakineth é mais visível e mais fácil de se lutar contra ela. A violência doméstica, no entanto, é mais insidiosa, mais virulenta, mais oculta, mais multifacetada. Ela está na raiz de quase todas as formas de violência do mundo e, como um cupim, destrói lentamente toda a tessitura das relações humanas. Uma estranha ponte une Sakineth a Eliza Samúdio. Desarmemos os corações e as mentes! Antes de tudo tem-se que entender que somos todos animais que há pouco descemos das árvores e ainda não conseguimos de todo escapar da Lei da Selva, da prevalência do instinto sobre a razão. Quem nunca compactou com alguma forma de violência que atire a primeira pedra!

J. Flávio Vieira


3 comentários:

socorro moreira disse...

Esse médico é advogado dos bons !

Abraços.

jflavio disse...

abraço a socorro pelo comentário afetuoso

Ana (Ballet de Palavras) disse...

Flávio,
Inicio o meu comentário com a confidência do prazer enaltecido no lado esquerdo do meu peito pela leitura do seu escrito. Um prazer comungado pela concordância das suas palavras que fazem do seu escrito um privilégio acrescido ao meu olhar, no entanto, obscurecido perante o tema lavrado.

As suas palavras traduzidas no seu texto, magnificente, apela-nos a uma tenacidade de sentidos. Um desassossego que traduz à tona da pele uma veracidade de término impossível. A violência é um acto que aterroriza. Sem apelo se materializa e, destrona aqueles que com que ela tem o infortúnio de se cruzar.

Aos outros, surpreende, entristece, maltrata todas as vezes que com ela se deparam. Sabe Flávio?! Entendo a vida como um enormíssimo palco, onde protagonista as emoções e, comoções são sentidas e, proporcionadas pelos dias que vivo, mas, e, no entretanto, por vezes, às vezes, muitas vezes, quando de protagonista a fiel espectadora me transmuto as cortinas abruptamente se encerram, a peça renuncia-se sem aplausos onde, apenas e, só um silêncio incrédulo é esclarecedor e, nomeia a peça de horrores anteriormente declamada e, lamentavelmente, por mim observada.

Reversamente, uma vivência enternecedora e, aprazível são desejos de mim para si.

Ana