"Se não creio na violência armada,
D. Hélder
De todos os líderes espirituais que conheci foi D. Hélder Câmara , certamente, aquele que mais sacudiu as estruturas do meu agnosticismo. Difícil se postar diante dele, sem ter a plena certeza de que tamanha força fluindo de uma criatura fisicamente tão frágil, não se podia explicar sem se recorrer ao transcendental. Unia o ímpeto à doçura. Compreendia, perfeitamente, que a caridade não tinha nenhum sentido se se transformasse numa profissão. As continuadas vozes penosas: Ah os pobrezinhos, os coitadinhos, os carentes, precisamos ajudá-los... traziam junto, um perigoso imobilismo. No fundo, as igrejas nada têm de libertador, necessitam dos desafortunados para que justifiquem seu apostolado.Se os pobres não mais existirem, meu Deus, que será de nós ? D. Hélder, do alto do seu pacifismo, percebia perfeitamente que a pobreza não é um acidente, uma fatalidade, mas um monstro projetado e criado pelo Capital. No fundo, os ricos se apossam das riquezas deste mundo, oferecendo as benesses dos céus aos descamisados, com a ajuda imprescindível de muitos sacerdotes que dividem com os burgueses o produto do butim. Institucionalmente o Cristianismo nada tem de religioso, ele é uma multinacional como outra qualquer. D. Hélder visionariamente sabia que apenas conselhos, discursos, negociações não teriam o poder de destruir uma máquina tão azeitada.Como seu Mestre ele avisara: “Não vim trazer a paz, mas a espada!”
Em 1978, em plena Ditadura Militar, no Recife, vi-o proferindo uma conferência num Congresso de Residentes. Era um orador vibrante e incendiário. Contou-nos que há poucos meses , na simplicíssima igrejinha das Fronteiras, onde o Arcebispo montara sua residência, fugindo das pompas dos palácios, teve a casa invadida por um Coronel e seu destacamento. O militar informou-o que iria fazer uma devassa ali pois recebera denúncias de que o Arcebispo estava acoitando terroristas e subversivos. D. Hélder, calmamente, o repreendeu. Ali era um templo e, como tal, merecia o devido respeito. E, com sua verve profética, desarmou-o sem disparar um tiro sequer:
--- Meu filho, aqui, historicamente, sempre foi lar dos perseguidos. É aqui que os órfãos de estado, de políticas públicas, de justiça, vêm procurar pouso. Você é novinho, meu filho, e ainda não percebeu. A vida é uma roda. Neste exato momento, você se encontra no topo. Mas a roda : roda, roda, roda... Daqui um pouquinho, sem que ao menos você perceba, você vai estar lá embaixo, igualzinho aos que você hoje chama de subversivos. Quem sabe, meu filho, então, o perseguido não será você? Coronel, quando chegar a sua hora, pode vir bater à nossa porta que ela estará aberta !
O coronel carrancudo deu meia volta e se foi, sem uma palavra sequer.
No primeiro de janeiro, na posse da Dilma, ex terrorista, ex perseguida e torturada, eleita de forma consagradora, assumindo o maior cargo público do país, lembrei-me de D. Hélder e da sua profecia. Em pouco mais de trinta anos, a roda da vida tinha completado um ciclo. Onde andará o coronelzinho com seu destacamento? Onde estarão escritas agora aquelas verdades aparentemente inatacáveis cuspidas nas ordens do dia? Afundaram as ideologias, as palavras, o rancor; sobrenadou a profecia.
J. Flávio Vieira
Um comentário:
Boa reflexão, J. Flavio.
Abraço,
Claude
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