Olhos fitos na avenida, tudo parecia inimaginavelmente diminuto. Dali de cima, as coisas se desencadeavam em slow-motion, como se à distância a vida não tivesse pressa. Os homens e os veículos se deslocavam lentamente, como se adivinhassem premonitoriamente que a correria é um anzol lançado pelo abismo. Soava, em meio a tudo ,um silêncio grávido e perturbador. Seria essa a idêntica visão que teria desse mundo, quando já não fizesse parte dele? Desfeito o zoom , tudo parecia tão perfeito! As ruas traçavam paralelas e perpendiculares quase geométricas; os carros transitavam com excessivo cuidado e as pessoas marchavam com passos simétricos e aparentemente calculados. Até o mais céptico dos homens , àquela distância, terminaria por concluir que deveria haver um maestro, de batuta erguida, dirigindo, ao longe, aquele espetáculo. O tabuleiro de xadrez , estendido lá em baixo, com suas casas traçadas e divididas pelos fios elétricos, pareciam aguardar a mão gigantesca pronta a marcar a próxima jogada. Súbito, a aguda simetria da paisagem lhe feriu a alma, como se ,de repente, fizesse um contraponto com seus caóticos conflitos interiores. Aos cinqüenta anos, caminho estreito à frente, os dias todos exatamente iguais , como se clonados por um anjo mau; um casamento que se findara por decurso de prazo mas que teimava em apodrecer no meio do povo; um emprego num Banco onde era ameaçado diuturnamente : "-- Sabe como é seu Ermano, o mercado anda muito exigente, essas máquinas todas fazem o serviço do senhor, com a vantagem de não reclamar e nem Ter cara de ressaca...ou o Senhor produz ou vai plantar batatas! ". A solução para todos os seus problemas estava bem ali, diante dos seus olhos, alguns poucos segundos e..... Tumm! Resumiria-se tudo na perplexidade curiosa dos transeuntes, nas lágrimas de crocodilo da família, na fingida cara de tristeza do chefe e dos colegas e na tranquilizadora franja do esquecimento. Ali , porém , estava a contemplar a paisagem e o mundo daquela altura parecia tão perfeito, tão harmonioso, que por um momento se afastaram todas as suas amarguras e frustrações , como se a exatíssima vastidão do universo sorvesse suas mesquinhas pequenezes. Fechou um pouco os olhos para recobrar as forças e caminhou em direção ao abismo. Estancou , novamente, quando, como numa miragem, foi despertado: viu surgir no edifício ao lado, num salão de festas de cobertura, um palhaço, puxando a roda com várias crianças e entoando o "Atirei o Pau no Gato". Como numa projeção de slides, retornou ao aniversário dos seus cinco anos, quando a vida aparecia para ele igualzinho à Casa de João e Maria : paredes de bolo, telhas de chocolate, ladrilhos de bombons. Aquela certamente era a trilha sonora perfeita , para o seu vôo de Ícaro: suas frágeis asas tostadas apelo sol da realidade . Observou, porém, antes da decolagem, mais detidamente o palhaço, com sua máscara, seu nariz de framboesa e sua maquiagem carregada. Então, foi como se baixasse o santo. Somos todos tantos dentro de nós mesmos, personagens sem conta neste palco da vida..., pensou, se um não vem desempenhando bem o seu papel, elimina-se este personagem, ao invés de incinerar toda a peça e destruir o teatro. Deu meia volta, desceu as escadas. Em casa mandou a mulher à merda, no trabalho mandou o chefe à PQP e só parou quando teve a certeza absoluta que havia suicidado completamente o Ermano. A partir daí, renasceu em meio aos seus eus tantas vezes confusos , loucos , contraditórios, mas redivivos.
J. Flávio Vieira
P.S. - Esta é para Socorro e foi inspirada numa vôo real acontecido com o Normando.
3 comentários:
Li tão contritamente ... Mas ,o P.S final, desarmou-me ainda mais.
Sabe por que desistimos do destino de Ìcaro ?
Porque somos alados nesse plano, e em todos os outros mais.
As nossas dores, bem como os prazeres (- os amores ) são entes , mitos, fantasiados de Eros e Ícaros.
A inocência desse arquétipo sempre me comoveu; a sua coragem também !
Graças talvez a tudo isso, nosso sonho de chegar aonde queremos, tenha um final feliz.
Literalmente , quase todas as distâncias tornaram-se insignificantes . Preciso reunir toda minha energia, em vida , para acompanhar o meu bando de amigos.
Que alegria tê-lo entre nós ! Vou pagar promessa ao Padre Cícero :
Um vela, uma muda de vestido negro , e uma festa !
Até mais tarde. Fabiana já marcou o próximo encontro.
E por aqui, seja sempre presente, dávida . Matozinho abriu um poço nesse Blog , e diz que vai reabastecer a cidade.
Abraços.
Abraços,
Socorro Moreira
Normando ficou distante da gente muito cedo.Mas deixou-se em nós.
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