Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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sexta-feira, 24 de julho de 2009

No ho l´etá - por José do Vale Pinheiro Feitosa

Quando compreendi o que me dizia, poderia ser, mas não foi uma decepção. De fato estava confuso. Era uma menina de 10 anos, eu tinha 19, não podia admitir, mas ambos nos apaixonáramos. Ela, um pássaro voando, eu penitente no estrado do confessionário. Jamais poderia dizer o que sentia, mas ela não tinha dúvida, enquanto eu negava. Admitia que não pudesse admitir. Hoje sei que estava apaixonado, mas na ocasião desempenhando o papel do adulto ético, um horror à paixão pedófila. Enquanto representações sinceras, eram outros os sentimentos. Trairiam a firmeza ética? Sim.

Mas não de momento, qual fraqueza de ocasião. Uma traição ao longo do tempo.

Irmã de um colega desde os tempos da alfabetização. Lembro quando a família comemorou o nascimento da menina. O seu crescimento, brincado, atrapalhando nossos esforços de estudo, sempre pedindo que eu desenhasse em folhas de papel que roubava do pai, paisagens e interiores de casas para brincar. Com o desenho no chão, as bonecas, carrinhos, miniaturas de animais, daquele cenário tosco, do aprendiz de desenhista, ela fazia um enredo sem igual. Perdi concentrações nas notas de colégio, observando, sem querer admiti-lo, a narrativa fantástica que bordava sentimentos.

No aniversário de sete anos. Eu tinha 16 anos, já me abraçava às adolescentes em boleros de corpos fundidos, nas matinês do clube social. Ludibriava a censura na porta do cinema para assistir os filmes de 18 anos. Fumava, me embebeda, lia romance, ouvia rock, trocava revistas do Carlos Zéfiro. Não fiquei tuberculoso com tamanhos esforços, nem a mão criou cabelos. Mas fui ao aniversário, apesar da pouca oferta naquele mundo infantil. E os olhos hipnóticos do coração retiraram com um simples espinho minha armadura juvenil:

- Eu vou me casar contigo e a teu lado viver a vida toda brincando.

Confissão que provoca riso. Cara de príncipe encantado, piadista de salão, queria disfarçar a intensidade do olhar dizendo tais palavras. Para equilíbrio na cena insegura, contei histórias de contos de fada, mas ela não mudou o olhar. Era firme e certeiro como são as convicções da história. Uma vez dito, aconteceria.

Quando compreendi a cena, a sombra do pecado cobriu meu coração. Viera jantar com a família, pois iria para a capital fazer universidade. O meu colega saiu com a namorada, os pais foram ao cinema, mas a menina, então com 10 anos, pediu-me para ficar um pouco mais e ouvir um disco.

Ela me deu a mão quente e puxou-me na direção da vitrola. Um perfume de paraíso saia dos seus cabelos, os seios nascentes despontavam sob o tecido fino, a cintura afinava e os quadris se avolumavam. Enquanto o mundo girava com as mudanças no corpo da menina, disfarçava de mim mesmo, o que sentia ao observá-las. Levou-me até um sofá junto à janela. Ligou o som, pôs o disco que despencou no prato feito meu sentimentos. Começava a girar e a agulha a correr os sulcos e ela sentou-se a favor da luz da sala, deixando seu rosto iluminado face ao meu. Olhar profundo e muda enquanto a música tocava. Em italiano, na voz de Gingliola Cinquetti, um tom de menina cantando:

Non ho l´etá. Non ho l´etá..per amarte...No ho l´etá... Per uscire solo con té.

Fervia e gelava em ondas sucessivas. Na música a mesma promessa de três anos atrás: Deixe que eu viva um amor romântico, na espera que chegue aquele dia. Não tenho idade. Para amar-te. Se você quiser. Se você quiser. Esperar-me naquele dia. Terá todo o meu amor por ti. A vitrola fez a última volta do compacto e desligou.

Ela foi comigo, sem dizer mais nada, até a porta de casa. Estiquei o braço para despedir-me e ela cobriu meu cumprimento com ambas as mãos. Mas não pronunciou sequer um adeus. Apenas prendia-me na eternidade com seu lindo e profundo olhar verde. Eu balbuciei algo como:

- Esperarei.

Esperei durante todo o curso universitário. Filho de pais pobres, trabalhando, fiquei seis anos sem voltar à cidade. A marca de uma linguagem simbólica, enviava cartas com uma única frase: a cada dia a espera diminui. Uma meizinha para minhas paixões arrasadoras à proporção que recebia a resposta de volta. Não eram letras, bilhetes ou poemas. Dentro do envelope a foto de uma menina virando adolescente, a adolescente se tornando o ente mais lindo que o mundo inventa em natureza de mulher. A vida e suas magnitudes por razão de viver. Apelei ao espiritismo: fôramos amantes em vidas passadas. Amor riscando o zênite da eternidade.

No início do sexto ano da minha ausência, as fotos continuavam afirmando a linda mulher, mas o cenário havia se modificado. Tinha Recife ao fundo. No final daquele ano a beleza dela era irretocável, mas a moda da roupa se modificara. Estilo mais militar, calças, jaquetas, cabelos presos, um ar de masculino feio como se fosse possível. No sétimo ano, assim que completei o curso, tratei de ser contratado na minha cidade.

Viver a prometida plenitude, embora a espera fosse um grande motivo para se viver. Assim que cheguei à cidade, um bilhete para ela: agora terás todo o meu amor. No meio do ano as fotos foram paulatinamente ficando coletivas, ela e um grupo de mulheres e depois com outros homens. Nas férias ela estava atolada de estudos e não veio. No final desse ano a quantidade de fotos diminuiu.

Após a passagem do ano, um bilhete dando-me o horário de chegada à cidade. Com meu carro fui até a rodoviária. Ela desceu iluminando a rodoviária. Mais que as fotos. Não a beijei, continuava encostado à barreira entre a menina e o adolescente. Fui saindo, lentamente, da rodoviária. Ela pediu-me para subir um morro que dominava a cidade e no qual havia um belvedere. Ficamos olhando a nossa cidade, ainda sem dizer palavras, tramando o futuro. Nisso ela foi até o bagageiro e pegou um gravador. Sentou-se ao meu lado e o ligou.

- Caminhando contra o vento. Sem lenço e sem documento...No sol de quase dezembro eu vou.

Olhando para a cidade, nem uma vez para mim, continuou ouvindo a fita, agora em outra música:

- Soy loco por ti América....Soy loco por ti amore.....Estou aqui de passagem, sei que adiante um dia vou morrer, de susto, de bala ou vício...

Agora explico os sentimentos traídos ao longo do tempo. Ela no movimento armado contra a ditadura, foi para o exílio e hoje está casada com um Canadense e mora na Austrália.

2 comentários:

socorro moreira disse...

Ai, que linda saga de amor. E o final nem deixou de ser feliz... O sonho ainda é vivo , e o futuro definido.
A lembrança ficou congelada, e o sentimento renasce por instantes , quando um raio de sol ocasional , incide na música título :" No ho l'etá".
Que bom, que os personagens não tenham morrido ainda de susto, de bala ou de vício.
Esão de sentimentos arrumados pela vida , ou quem sabe , apaixonado-se ainda, nas rodas das margaridas.
Admirável o poder do escritor em deixar-nos ligadas num conto de amor.
Nem tenho jeito de negar : eu gosto !
Só não gosto quando o conto termina, quando o romance finda ... Mas fico esperando o próximo.


Belo, José !

Carlos Eduardo Esmeraldo disse...

Prezado Zé do Vale
Gostei muito do texto. Se foi ficção, mas perfeito ainda. Parabéns!