Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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Colaboração:Claude Bloc


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sexta-feira, 24 de julho de 2009

A Poesia de Ana Cecília de Sousa Bastos







Uma poesia em tom menor, feita de impressões, miudezas, vestígios do dia. É desse modo que vejo a poesia da baiana Ana Cecília de Sousa Bastos. Ela mesma diz: "Acho que faço uma poesia assim, de um canto de jardim, de uma rede na varanda, não dos salões".

Nascida em Salvador, ela vem de uma família cearense. Por isso passou a infância, como diz, entre o mar da Bahia e o pé-de-serra da Chapada do Araripe, no Crato, Ceará. Quem sabe essa vivência entre o mar e o sertão tenha aguçado a observação da menina para ver e sentir coisas e pessoas e transfundi-las em versos, obedecendo "à doce tirania da palavra".

Psicóloga e professora da UFBa, ela escreve desde a adolescência. Fez uma edição de autor aos 22 anos e andou publicando textos esparsos. Em 1999, Ana Cecília conquistou o prêmio Copene/Fundação Casa de Jorge Amado, com o livro Uma Vaga Lembrança do Tempo.

Desse livro extraí os poemas ao lado. Em "Da Dor", a poeta procura entender e até localizar fisicamente o sofrimento moral. Mas, no final, em manobra bem drummondiana, foge para uma lembrança de infância. "Jugo" e "Vestígios" são poemas preocupados com o próprio ofício poético. É a mão do poeta mexendo no formigueiro das palavras. "Agenda", por sua vez, propõe indagações existenciais. "De todas as perguntas", afirma o poema, "só quero reter a centelha".

Carlos Machado



DA DOR

A dor é algo como se não fosse.
Derrapagem à beira do abismo
(aquele como se não estivesse).
Holofote sobre escura porção de sombras.
Eco à revelia do próprio eu
re-ver-be-ra-ção
por sobre o dia.
Fissura aberta minando,
ora esquecida ora sempre,
em alguma parte do corpo
como se fosse o todo.

Dasdô?
Na infância era uma prima
e seus olhos encovados.


JUGO

Obedecer à doce tirania da palavra.
Anular censura, momento, lugar.
Deixar no papel o verso líquido,
esse pálido espelho da alma.
Enquanto deixo-me estar,
impressionada pela cor da palavra
"pálida".


VESTÍGIOS

Estranha pulsão, esta:
derramar no caderno porções de alma.
A mão, captando sinais invisíveis.
Lenta, no formigueiro em marcha.
Absolutamente só,
enquanto todos perseguem a sagrada hora do
[ trabalho
e dos compromissos bancários.

E depois, palavras escondidas em oculto caderno,
papel rasgado, para que delas não sobrem
vestígios.


AGENDA

Decididamente não me interessam as vãs soluções,
nem as posições corretas
— essas respostas que a gente busca na opinião
[ informada,
antes de conferir o próprio desejo;
nem os dados que o banco ou a polícia já guardam por ofício,
nem como envelhecemos igual
— por força não da idade, mas do hábito.

De todas as perguntas,
só quero reter a centelha.

Desejo saber a que horas do dia encontro no céu
[ este azul de agora.
Desejo saber a que horas da vida há este sorriso
[ nos olhos dos filhos.
Desejo saber quanto dura a paixão pela vida.



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004
Ana Cecília de Sousa Bastos
In Uma Vaga Lembrança do Tempo
Fundação Casa de Jorge Amado/Copene Salvador, 1999

Um comentário:

socorro moreira disse...

"Quanto dura a paixão pela vida "?


A resposta eu também quero.

É bom demais,ler Ana Cecília!