Passada a guerra, em 1945, enquanto aguardavam terminar a casa que meu pai construía em uma colina fronteira ao pátio da pequena povoação, próxima da capelinha, meus pais ocuparam alguns meses uma das dependências da casa grande da fazenda.
Haviam casado em Crato, e logo se deslocaram para o município de Lavras da Mangabeira, onde, no Tatu, fixariam residência, nessa propriedade dos meus avós paternos.
O lugar guardava existência própria, na simples precariedade que detinha. Uma dúzia de casas de taipa habitadas por famílias de agregados. Dois açudes. Canavial. Moagem. Lavouras de subsistência no incerto período chuvoso. Arroz. Feijão. Milho. Fruteiras. Além da fama misteriosa de mal-assombrado.
Minha trisavó, Fideralina Augusto escolhera, na segunda metade do século anterior, estabelecer ali a sede do clã que formaria, filhos e genros senhores de baraço e cutelo na política e nas terras em volta. Construíra engenho a boi, o açude maior, uma casa senhorial e, no contar dos mais antigos em serões intermináveis, deixara enterrada botija de moedas de ouro, prata e ouropéis preciosos.
Desde sua morte, em 1919, vitimada por febre destruidora espalhada no mundo, vezes tantas apareceu nos sonhos, ou em vulto, causando transtorno fora e dentro dos antigos domínios. Queria a todo custo entregar o legado aos que ficaram, para escapar das chamas do engano e da maldição das almas penadas.
Minha mãe buscava não se impressionar com as histórias das aparições da matriarca. De formação católica, nutria outros pensamentos a respeito daquilo. Punha as histórias de alma na caixa do folclore, das tradições e lendas sertanejas, coisas de tipo fantasioso.
O tempo, senhor de tudo, no entanto, desfilava dias e noites e modifica até os mais arraigados conceitos.
Naquela hora, ainda acordada no meio de uma madrugada fria, escutava as rajadas do vento no escuro quando ouviu, de longe, o trotar de montarias. Vinham se aproximando. Pela estrada, percorriam o lado da bagaceira do engenho, passavam no terreiro da casa e mergulhariam pelo beco formado entre a casa grande e o engenho, indo desembocar no alto da parede do Açude Velho, fonte da água das imediações. Ao final, uma cerca de vara trançada e cancela que batia forte à passagem dos viventes, eco a deslizar na mata abaixo do açude.
O som da pisada dos animais chegava mais perto, realçando o vazio silencioso da solidão. Quase defronte da casa, vozes se destacavam em animada conversação.
- Hoje seu Amâncio começou a moer foi cedo?! – distinguiu nítidas as palavras de um dos cavaleiros.
Até então, nada incomum. No instante, contudo, ela lembrou ser dia de domingo, o feriado da semana, em que não se moia, a tornar irreal e estranho aquele comentário, a causar medo de ouvir sem uma razão que justificasse.
Ainda sob o impacto da afirmação desencontrada, frêmito percorreu seu corpo de cima a baixo, sob os lençóis, enquanto o tropel marchava adiante, deixando-lhe gravado no coração, naqueles vagos adormecidos, o ferro sombrio do inexplicável, presença constante na fase que viveria no sítio desde essa noite.
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"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata."
(Carlos Drummond de Andrade)
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sexta-feira, 31 de julho de 2009
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2 comentários:
Emerson , e a botija ?
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Emerson, faz um conto no estilo da grande literatura nordestina. O ambiente é a extensão da alma de qualquer caririzeiro dos tempos dos engenhos. O linguajar, como este "baraço" é da literatura clássica da região. O clima, o andamento, a conclusão. Eis um conto de profunda raizes literárias. Escola literária é isso aí.
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