“Detrás” conseguiu um ajudante que o guiava, nas caminhadas, amenizando os riscos previsíveis. Alcunharam-no imediatamente por “Dafrente” . Torquato mostrava-se feliz como nunca na vida, mas entendia que o mundo estava às avessas e que necessitava de algumas precauções adicionais. Aos poucos, a cidade terminou absorvendo totalmente aquela estranhice e ele perdeu um pouco a primazia de centro das atenções municipal. Agora podia contemplar com total liberdade o lindo cenário passado que tanto desejara e, percebeu, que quanto mais distante fitava, mais a visão lhe parecia bonita e colorida. Mas lhe satisfazia. Torquato , então, convenceu-se que cometia uma injustiça. Não lhe parecia justo ter todo o privilégio e seu fiel escudeiro, o ajudante, ser tolhido daquela satisfação ímpar. Tanto fez que terminou o convencendo a andar de costas como ele. Agora, pelas ruas e calçadas da cidade, desfilavam os dois , andando ao contrário dos outros. O que a princípio rescendia como estranho novamente começou a fazer parte do espetáculo trivial e cotidiano da cidade. Não demorou muito a que alguns passassem a aderir à moda de Torquato e seu Sancho Pança. Nunca se conseguiu bem entender o porquê. Talvez existisse alguma coisa a ver com aquele ar de gozo eterno, meio místico que Detrás & Dafrente empunhavam. O certo é que o clube, pouco a pouco, ganhou novos sócios.
Passados alguns anos, a esquisitice de Torquato se tornara regra entre os habitantes. Os mais velhos, mais renitentes às transformações, já haviam desaparecido; os de meia idade faziam parte da grande geração da mudança e os mais novos haviam crescido já com a nova normalidade.
Um dia chegou à cidade um forasteiro chegado de terras longínquas. Simplesmente não conseguia acreditar no que via. Postou-se atônito, estarrecido ante àquela realidade quase surreal. Todas as pessoas andavam de costas, até mesmo os animais de estimação. As selas dos cavalos haviam sido readaptadas para que pudessem todos montar ao inverso, olhando para o rabo do animal. As carroças traziam o burro propulsor atrás e o carroceiro ia à frente como numa boléia de caminhão. Na igreja, o padre rezava de costas para os fiéis e estes também ficavam de costas para ele e olhando para a rua. O forasteiro encontrou uma verdade oculta e profética nesta atitude.
Os prefeitos eleitos já com os novos hábitos tiveram que readaptar sua ação política, vislumbrando os novos tempos. Quase todas as árvores foram cortadas das avenidas no intuito de diminuir os esbarrões. Os postes de iluminação pouco a pouco suprimidos, por razões idênticas. O cineminha teve sua tela arrancada. Como a platéia tinha cadeiras em sentido contrário, assistiam ao cinema apenas ouvindo os diálogos e sem se atentar à projeção que se fazia às suas costas. O forasteiro achou aquilo tudo louco demais e tentou convencê-los disso. Terminou sendo enxotado dali , após safanões e ameaças. E este também foi o destino de muitos que ali chegaram , tentando rever os hábitos agora já consolidados. Houve, ao que se sabe, até caso de chacina coletiva de um viajante mais renitente. Onde já se viu? Em terra de sapo, de cócoras com ele!
Os tempos terminaram por mostrar que a primal e contagiosa esquisitice de Torquato não havia sido tão inócua assim. A nova atitude, levada às últimas conseqüências, mexeu com os relacionamentos. As pessoas ficaram mais distantes entre si, não se fitavam como antigamente . Fixados no horizonte longínquo, olhavam-se uns aos outros meio de viés. Os namoros também ficaram menos sensuais, já que os abraços agora eram, necessariamente, costa com costa. As danças, também, ficaram quase impossíveis: bunda roçando bunda. Os casamentos já não geravam filhos, por motivos idênticos, já que as transas necessitavam de contorcionismos de um Cirque du Soleil. A retirada das árvores, para facilitar a livre circulação dos bichos-caranguejo, terminou por modificar, também, a paisagem. Não só a visão do presente e futuro , como se imaginava a priori, mas também a pretérita. Por outro lado, andando todos em uma mesma direção, haviam se acostumado a mirar apenas o poente e os crepúsculos e acabaram esquecendo que havia auroras. O certo é que o povo, pouco a pouco, desapareceu. Uns de velho, outros por acidentes. Um dia “Dafrente” caiu em uma cacimba e não foi possível salvá-lo. Também , já não chegavam novos viandantes. Temiam represárias. A notícia da pouca receptividade se espalhara rápido.
Um dia, a dura constatação : restava apenas Torquato. Só, com queixo proeminente , caminhava indefinidamente em direção ao poente. Retinas prenhes de treva crepuscular, ele nem sequer se deu conta quando o Anjo aproximou-se às suas costas com a espada flamejante e a sua carruagem de fogo. Ainda percebeu um pouco o brilho voluptuoso que se irradiava à volta. Mas para vê-lo, teria que cometer a heresia de voltar-se e fitá-lo de frente e, pior, com a certeza de que ele não o esperava de costas. Preferiu a treva e ao redemoinho.
J. Flávio Vieira
3 comentários:
E eu que, no início identifiquei-me de cara com Torquato ... Agora convoco-me dafrente , e penso na mulher de Lot.
Só você mesmo , Zé Flávio , pra nos fazer virar a página , esquecer o crepúsculo , e mergulhar no rosa das auroras.
Mesmo assim , tive o cuidado de deixar um olho e um pé atrás.
Maravilha de texto !
Abraços.
José Fávio,
Parabéns por mais um texto maravilhoso. A sua maneira de descrever os fatos supera nossas expectativas.
Aproveito a oportunidade para agradecer os cuidados com a minha mãezinha.
Tenha um ótimo final de semana.
Grande abraço,
Edilma
Abraço à Edilma e Socorro . O texto é longo e me parece de digestão não muito fácil. Meio místico e visionário diferente do que normalmente costumo escrever.Curti fazê-lo. Ainda bem que vcs apreciaram. Estou ainda devendo os livros a Edilma, mas juro que pago a dívida sem a necessidade dela recorrer a São Expedito!
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